sexta-feira, 17 de abril de 2015

A virtude da gratidão





A GRATIDÃO

A gratidão é a mais agradável das virtudes; não é, no entanto, a mais fácil. Por que seria? Há prazeres difíceis ou raros, que nem por isso são menos agradáveis. Talvez sejam até mais. No caso da gratidão, todavia, a satisfação surpreende menos que a dificuldade. Quem não prefere receber um presente que um tapa? Agradecer à perdoar? A gratidão é um segundo prazer, que prolonga um primeiro, como um eco de alegria à alegria sentida, como uma felicidade a mais para um mais de felicidade. O que há de mais simples? Prazer de receber, alegria de ser alegre: gratidão. O fato de ela ser uma virtude, porém, basta para mostrar que ela não é óbvia, que podemos carecer de gratidão e que, por conseguinte, há mérito - apesar do prazer ou, talvez, por causa dele - em senti-la. Mas por quê? A gratidão é um mistério, não pelo prazer que temos com ela, mas pelo obstáculo que com ela vencemos. É a mais agradável das virtudes, e o mais virtuoso dos prazeres.
...A gratidão se regozija com o que aconteceu, ou com o que é; ela é, portanto, o inverso do arrependimento ou da nostalgia (que sofrem com um passado que se foi, ou que não é mais), como também da esperança e da angústia, que desejam ou temem (desejam e temem) um futuro que ainda não é, que talvez nunca seja, mas que as tortura com sua ausência... Gratidão ou inquietude. A alegria do que é ou foi, contra a angústia do que poderia vir a ser. “A vida do insensato”, dizia Epicuro, “é ingrata e inquieta: ela se volta toda para o futuro” Por isso eles vivem em vão, incapazes de se saciarem, de se satisfazerem, de serem felizes: eles não vivem, dispõem-se a viver, como dizia Sêneca, esperam viver, como dizia Pascal, depois lamentam o que viveram ou, mais freqüentemente, o que não viveram... O passado como o futuro, lhes falta. Já o sábio regozija-se com viver, claro, mas também com ter vivido. A gratidão (charis) é essa alegria da memória, esse amor do passado - não o sofrimento do que não é mais, nem o pesar pelo que não foi, mas a lembrança alegre do que foi. É o tempo reencontrado, se quisermos (“A gratidão do que foi”, diz Epicuro). Compreendemos que esse tempo torna a idéia da morte indiferente, como dirá Proust, pois aquilo que vivemos, a própria morte, que nos levará, não poderá tomar de nós os bens imortais, diz Epicuro, não porque não morremos, mas porque a morte não poderia anular o que vivemos, o que fugidia e definitivamente vivemos. A morte só nos privará do futuro, que não é. A gratidão liberta-nos dele, pelo saber alegre do que foi. O reconhecimento é um conhecimento (ao passo que a esperança nada mais é do que imaginação); é por aí que ela alcança a verdade, que é eterna, e a habita. Gratidão: desfrutar eternidade.
Isso não nos restituirá o passado, objetar-se-á a Epicuro, nem o que perdemos...Sem dúvida, mas quem pode fazê-lo? A gratidão não anula o luto, consuma-o: ”É necessário curar os infortúnios com a lembrança reconhecida do que perdemos, e pelo saber de que não foi possível tornar não-consumado o que aconteceu. Pode haver formulação mais bela do trabalho de luto? Trata-se de aceitar o que é, também o que não é mais, e de amá-lo como tal, em sua verdade, em sua eternidade: Trata-se de passar da dor atroz da perda à doçura da lembrança, do luto a consumar ao luto consumado (“a lembrança reconhecida do que perdemos”), da amputação à aceitação, do sofrimento à alegria, do amor dilacerado ao amor apaziguado,. “Doce é a lembrança do amigo desaparecido” dizia Epicuro - a gratidão é essa própria doçura, quando se torna alegre. No entanto, o sofrimento é mais forte primeiro: “Que terrível ele ter morrido!” Como poderíamos aceitar? Por isso o luto é necessário, por isso o luto é difícil,, por isso é doloroso. Mas a alegria retorna, apesar dos pesares. “Que bom ele ter vivido!” Trabalho de luto: trabalho de gratidão.
...A gratidão é alegria, repitamos, a gratidão é amor...Alegria somada a alegria: amor somado a amor. A gratidão é nisso o segredo da amizade, não pelo sentimento de uma dívida, pois nada se deve aos amigos, mas por superabundância de alegria comum, de alegria recíproca, de alegria partilhada. “ A amizade conduz sua dança ao redor do mundo”, dizia Epicuro, “convidando todos nós a despertar para dar graças”. Obrigado por existir, dizem um ao outro, e ao mundo e ao universo. Essa gratidão é de fato uma virtude, pois é a felicidade de amar e é a única.

André Comte-Sponville - A Gratidão (fragmentos).


Onde:

Pequeno Tratado das Grandes Virtudes # André Comte- Sponville
Ed. Martins Fontes

http://www.imagenesyfotosde.com/2014/01/imagenes-de-gracias-parte-4.html

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