quinta-feira, 29 de junho de 2017

Sem eufemismos: já é ditadura!







Check list: 21 razões pelas quais já estamos em Estado de exceção

Lênio Luiz Streck

Valho-me do livro que melhor analisa, para além de Agamben, o problema do que se pode chamar de Estado de exceção nestes tempos conturbados. Falo de Autoritarismo e golpes na América Latina — Breve ensaio sobre jurisdição e exceção, de Pedro Serrano, para quem o Brasil vive um momento perigoso de crescimento acelerado de medidas próprias de um Estado de exceção, que estão sendo praticadas cotidianamente e, o que é mais grave, naturalizadas. Nossa incipiente democracia vai assim se esfacelando e se transformando em uma maquiagem, que confere a aparência de um Estado Democrático, mas ao invés de ampliar e efetivar direitos, suprime-os paulatinamente, conclui Serrano.

O Estado de exceção ocorre quando determinadas leis ou dispositivos legais são suspensos (no sentido de não serem aplicados). Ou seja, alguém com poder põe o direito que acha adequado para aquele — e cada — caso. O soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção, diz Carl Schmitt. Para ser generoso, poderia aqui falar de um “Estado de Exceção Regional(izado)”, isto é, ao menos em uma área sensível do Brasil já vivemos esse fenômeno denunciado por autores como George Agamben. Quando se suspende uma lei que trata de direitos e essa suspensão não tem correção porque quem tem de corrigir e não o faz ou convalida a suspensão, é porque o horizonte aponta para a exceção.

Vou elencar alguns tópicos que compõem uma espécie de check list para saber se estamos ou não perigosamente na tênue linha do Estado de exceção. Assim, pode-se dizer que estamos em Estado de exceção quando

1. a advocacia se torna um exercício de humilhação cotidiana;

2. indício e presunções viram prova, prova é transformada em uma mera crença e juiz condena réu a longa sentença (reformada) baseado em meros relatos de delatores;

3. faz-se condução coercitiva ATÉ de advogado, em flagrante violação do CPP e da CF;

4. advogado é processado por obstrução de justiça porque aconselha seu cliente a não fazer colaboração premiada;

5. ocorre divulgação (seletiva ou não) de gravações resultantes de intercepções não autorizadas; isto é, quando a GloboNews e o Jornal Nacional sabem antes do próprio réu;

6. arquiva-se, com argumentos de política e não de princípio, representação contra quem procedeu — confessadamente — a divulgação da prova ilícita;

7. ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça confessa que foi conivente com vazamento, sob o argumento de que a ilegalidade era para o bem;

8. o MP faz denúncia criminal considerada por Tribunal Regional Federal como coação ilegal (assim, literalmente) e isso não acarreta repercussão nos órgãos de fiscalização do MP;

9. membros do Ministério Publico e do Judiciário se manifestam em redes sociais (tomam lado) confessando parcialidade e incitando a população contra o Tribunal Superior Eleitoral, face a julgamento com o qual não concordam;

10. agentes políticos do Estado vendem, por intermédio de agenciamento comercial, palestras por altos valores, autopromovendo-se a partir de processos judiciais das quais são protagonistas;

11. ocorre a institucionalização da ausência de prazo para prisões preventivas (há casos de prisões que ultrapassam a dois anos, usadas para forçar delações premiadas e acusados (ou indiciados) “aconselhados” a trocarem de advogado, para contratarem causídicos “especialistas” em delação;

12. juiz constrói um Código de Processo Penal próprio, a ponto de, no bojo de uma sentença de um réu, dar incentivo condicionado à delação de um outro réu, tudo à revelia da lei e do CPP;

13. se institucionaliza a dispensa dos requisitos do artigo 312 do CPP para decretação de prisão preventiva; lei vale menos que o clamor popular;

14. um agente político do Estado troca de lado no combate ao crime: em linguagem ludopédica, é um craque — sai do ataque e vai para a defesa;

15. delações concluídas e homologadas à revelia da legislação, inclusive com cumprimento de penas que-não-são-penas porque não houve julgamento; ou seja, o prêmio da delação premiada é recebido antes do processo;

16. “normalização” do lema “se delinquir, delate” (conforme bem denuncia o jornalista Vinicius Mota): “está aberta a via para um ciclo de delações interminável e potencialmente infernal, porque composto de informações de difícil comprovação”; lambuzamo-nos com o melado recém-descoberto, diz Mota;

17. perigo de se institucionalizar uma espécie de “lavagem de prova ilícita”, isto é, a legitimação de delações sem denúncia e “constitucionalização” da possibilidade de uso de prova ilícita (por exemplo: o sujeito, via prova ilícita de raiz, chega ao MP e faz acordo; com esse acordo, recebe imunidade; depois essa prova estará “lavada” e o judiciário não mais poderá anulá-la);

18. naturalização de decisões que decretam prisões baseadas em argumentos morais e políticos;

19. naturalização de denúncias criminais baseadas em construções ficcionais; enfim, decisões (atenção: o ato de denunciar alguém[1] já é uma decisão) que deveriam ser baseadas no Direito não passam de escolhas baseadas em opiniões morais e políticas;

20. como se fosse candidato a senador ou presidente da república, candidato a PGR diz que precisamos de uma reforma política..., mostrando, assim, que alguma coisa está fora de ordem nas funções estatais;

21. por último, estamos em Estado de exceção Regional (EER) quando todos os itens acima não causam indignação na comunidade jurídica e parcela majoritária dela os justifica/naturaliza pelo argumento de que “os fins justificam os meios”.

A lista pode ser estendida. São sintomas. Cada leitor pode fazer a sua. O que aqui foi exposto é simbólico. Tudo começou com o ativismo e a judicialização da política... para chegar ao ápice: a politização da justiça.

Imparcialidade e impessoalidade: eis o que se espera de quem aplica o direito. E isso já se erodiu. Quando jornais como O Estado de S. Paulocomeçam a exigir o cumprimento de garantias e criticar as delações, é porque de há muito começou a chover na serra... a planície é que não se deu conta — aqui parafraseio Eráclio Zepeda.

Juristas viraram torcedores. E torce-se o Direito à vontade. Vontade de poder (Wille zur Macht). A mídia faz a pauta (des)institucional. O Direito desaparece(u). Lewis Caroll — em Alice Através do Espelho — inventou/denunciou, bem antes de Agamben e Schmitt, o sentido de Estado de exceção. O soberano, que decide no Estado de exceção, dá às palavras o sentido que quer, como o personagem Humpty Dumpty. Por isso, o prazo para a prisão é aquele que quem tem poder de dizê-lo, é. A fundamentação também é aquela que...! E pode fazer condução coercitiva... porque sim. Até de advogado. E pode...tudo. Desde que tenha o poder. Próximo passo: dispensa de advogado nos processos judiciais. Futuro: Privatização da ação penal — se o réu confessar logo, nem denúncia haverá. E delegado terá o poder de mandar recolher o indiciado diretamente à prisão.

O engraçado de tudo isso é que, face a este estado da arte, defender a estrita legalidade virou um ato revolucionário. Tenho dito isso em todas as minhas palestras não-remuneradas.

Post scriptum I: Onde deve sentar o advogado? Resposta do Pe. Bartolomeu

A Câmara aprovou o Projeto de Lei 4.850, de 2016, com importantíssimas conquistas no plano da garantização das prerrogativas da profissão de advogado. Mas, nem tudo são flores no projeto. Por exemplo, não sei o que os deputados que aprovaram a emenda no artigo 7, XXII, do Estatuto da OAB, queriam ou querem. Só sei que foi à revelia da OAB. Com a alteração proposta no projeto, o advogado passa a sentar na mesma altura do Ministério Público (ao que entendi). Viva, dirão os advogados... Mas, se lermos todo o dispositivo, veremos que ambos sentarão... abaixo do juiz.Verbis:

“Durante as audiências, o advogado sentar-se-á à esquerda do juiz, ao lado de seu cliente, e a parte adversa tomará assento à sua direita, ambos em igual posição, horizontal ou perpendicular, abaixo do magistrado”.

(Não)Bingo: até agora, os advogados estávamos formalmente no mesmo nível dos juízes e MP; agora, estamos legalmente abaixo do juiz. Ao que vi, os deputados, para igualarem os advogados ao MP, puxaram este para baixo e deixaram o juiz acima dos dois. Poxa. Mais uma vitória destas e estaremos totalmente lascados — exatamente o que disse o general Pirro às portas de Roma, depois de uma “grande vitória”, olhando para as suas tropas escangalhadas. No Brasil, regras de processo são feitas por regimento interno e portaria; já o lugar de sentar é regulado por lei. Logo, logo vem um PEC para colocar o advogado para fora da audiência. Podíamos também regular a gravata, a sua cor, o cabelo do causídico e coisas desse jaez...

Quase ia esquecendo. A propósito do lugar de sentar, a amiga Andrea Bispo, do longínquo e simpático Pará, chama a atenção para este trecho do Memorial do Convento, de Saramago, página 65, que deveria ser lido pelos senadores quando da votação naquela casa:

“Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como para não dar tempo ao diabo de concluir as suas obras, Que estás a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda.”

Portanto, muito cuidado em pedir para sentar do lado esquerdo. Se me entendem as implicaturas de tudo o que aí está dito. E não dito.

Post Scriptum II: A ConJur transmite o colóquio sobre positivismo, organizado por mim na Unisinos nesta quinta-feira (29/6) e sexta-feira (30/6).


1 A propósito da denúncia do PGR contra Temer, feita com sumário (nova moda) em mais de 60 laudas, lembro que, quando eu iniciava minha carreira no MP, um velho Procurador me disse o seguinte: - quem propõe arquivamento em 60 laudas é porque deveria denunciar em 6; e quem quer denunciar em 60 laudas, arquiva em 6 ou requer rigorosas diligências para buscar provas concretas. Sábio conselho que procurei seguir por 28 anos. Hoje tudo mudou.


Onde:

http://www.conjur.com.br/2017-jun-29/senso-incomum-check-list-21-razoes-pelas-quais-estamos-estado-excecao?utm_

quarta-feira, 21 de junho de 2017

O ônus da prova ou o Direito pelo avesso

Charge de Ivan Cabral


Nova prova liquida a denúncia do triplex

Paulo Moreira Leite

Num país que poderá ler, a qualquer momento, a sentença de Sérgio Moro sobre o triplex do Guarujá, é bom saber que nos últimos dias a defesa de Luiz Inácio Lula da Silva conquistou um bom trunfo a favor de seu cliente.

Na conclusão de um trabalho de investigação que recorda seriados policiais norte-americanos, os advogados descobriram num cartório de Salvador -- sede da empreiteira OAS -- um documento que liquida a denúncia de que Lula recebeu o apartamento como contrapartida por três contratos entre a Petrobras e a construtora.

Já se sabia, que o imóvel não está e nunca esteve registrado em nome de Lula (nem de sua mulher Marisa) e permanece como propriedade da OAS. Também se sabia que Lula nunca teve as chaves do apartamento nem passou uma noite no lugar. Os testemunhos de que fez uma visita ao local e não gostou da ideia de ter um imóvel na praia são conhecidos.

O documento recuperado pelos advogados, e incorporado nas Alegações Finais enviadas a Moro na terça-feira, acrescenta um elemento novo neste conjunto de incertezas e fragilidades. Trata-se de um "contrato de cessão fiduciária de direitos creditórios", uma transação firmada entre a OAS e a Caixa Econômica. 

Pelo contrato, promove-se um tipo de acordo que se tornou relativamente banal no mercado imobiliário a partir da década de 1990. Numa operação que tem o FGTS como único debenturista, a OAS alavancou recursos financeiros e ofereceu imóveis em vários pontos do país -- não só no Guarujá, mas em Campo Grande, Lauro de Freitas e Cabula, na Bahia -- como garantia. O triplex 164-A, que foi sem nunca ter sido, é um deles, entre muitos. 

Sua venda não é proibida. Conforme um dos anexos do contrato, os pagamentos recebidos pelos apartamentos seriam depositados, integralmente, numa conta na própria Caixa. Caberia a OAS fazer a comercialização. Os recursos das vendas não lhe pertencem -- mas à Caixa. Resta à OAS uma dívida a pagar. 

Sublinhando a fraqueza da denuncia contra Lula, o advogado Cristiano Zanin esclareceu na coletiva de ontem: "Nem Leo Pinheiro nem a OAS poderiam dispor de um apartamento que deveria ser pago à Caixa." 

As descobertas sobre o caráter imaginário da denúncia do triplex não chegam a ser uma novidade e já passaram por outras geografias. Formulada numa fase anterior a Lava Jato, a versão inicial, do Ministério Público de São Paulo, também tinha Lula como alvo mas tinha um horizonte estadual. Em março de 2016, integrantes do MP pediram a prisão de Lula e do tesoureiro do PT João Vaccari, entre outras pessoas. Diziam que a empreiteira havia sido favorecida pela entrega do patrimônio da Bancoop, a cooperativa de bancários que foi à falência e, com autorização dos cotistas, transferiu investimentos para a OAS, entre eles o edifício do Guarujá. Os promotores também acusaram Lula de ser o proprietário oculto do triplex, recebido como presente por sua atuação como "mascote de vendas" da OAS, a quem serviria como chamariz para a atração de compradores.

A fraqueza da denúncia e o tom politizado estimulou um debate sobre sua parcialidade e o assunto chegou ao Conselho Nacional do Ministério Público. Os conselheiros presentes, que tem como missão controlar o funcionamento do MP no país inteiro, concordaram, por unanimidade, com o voto do relator Valter Shuenquener. Este lembrou um fato óbvio -- o direito de todo cidadão ser investigado e acusado por um órgão escolhido segundo critérios abstratos e "não casuisticamente." Parecia uma condenação direta ao promotor do caso mas não foi.

Na mesma tarde, após os mesmos debates, os mesmos conselheiros aprovaram uma exceção à regra que acabavam de confirmar: os casos já distribuídos, entre eles do triplex, deveriam ficar "como estão." A discussão sobre denúncias casuísticas fez efeito mais tarde. Em abril de 2017, a juíza Maria Priscilla Ernandes Veiga Oliveira absolveu todos os acusados do caso -- inclusive João Vaccari. Disse na sentença que era um caso de "absolvição sumária." Lembrou que a defesa apontava para a "inépcia da denúncia" e afirmou: "razão lhe assiste."

Lula, a mulher e o filho Fábio Luiz, que haviam sido acusados, também foram excluídos da denúncia em São Paulo -- mas a juíza Maria Priscilla enviou o caso de Lula e Marisa para Curitiba. Ali, o triplex continua o mesmo, na mesma praia, com os mesmos papéis. A Bancoop foi substituída pela Petrobras, situação que assegura a Sérgio Moro dar a próxima palavra sobre o caso. Com a descoberta do "contrato de cessão fiduciária de direitos creditórios", a defesa conseguiu uma prova inédita da inocência de seu cliente, o que já é, por si, um fato insólito do ponto de vista do Direito -- pois cabe a acusação provar aquilo que diz.


Onde:

https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/302317/Nova-prova-liquida-a-den%C3%BAncia-do-triplex.htm

segunda-feira, 19 de junho de 2017

sábado, 10 de junho de 2017

Esquizofrenia jurídica

Charge de Angeli


TSE escancara humilhante parcialidade da Justiça

Paulo Moreira Leite

Para quem foi levado a acreditar que a Justiça é a salvação da dignidade nacional, um impávido colosso entre as demais instituições com sede na Praça dos Três Poderes, a decisão que preservou Michel Temer cumpriu uma missão didática.

Mostrou que o Judiciário tem um lado político e que, mesmo uma frente tão vigorosa liderada pela TV Globo, pode ser derrotada nos tribunais.

O sentimento de injustiça e indignação diante de uma decisão que agora amarga a boca de pessoas respeitáveis e decentes - além de pilantras e engravatados flagrados nas ilusões de uma arrogância profunda - tem sido partilhado de forma permanente por uma grande parcela de brasileiros nos últimos anos.

Pode ter sido desde 2012, com as sentenças duras para provas fracas da AP 470.

Ou desde 2014, com as prisões preventivas que alimentaram as delações premiadas da Lava Jato, submetendo lideranças históricas e respeitáveis, como José Dirceu a sentenças desproporcionais, num jogo de cartas marcadas e truques previsíveis para que venham a mofar na prisão.

Ou desde setembro de 2016, com o impeachment de uma presidente eleita com 54,5 milhões de votos, numa denúncia de "pedaladas fiscais", que não é considerada crime de responsabilidade em nenhum livro de Direito.

Pense em todas as denúncias contra Aécio Neves que ficaram escondidas desde que Roberto Jefferson falou sobre o esquema de Furnas na CPI dos Correios, em 2005, em Brasília - e não deixe de perguntar pela cocaína no helicóptero. Pense nos desvios grotescos de trens urbanos e do metrô de São Paulo, denunciados em São Paulo, na Alemanha, na França, onde são definidos como escândalos "merdiatiques" - rendem pouco e sujam as mãos. Não esqueça da cratera na estação Pinheiros do metrô, onde morreram sete pessoas, há dez anos. Lembre: muito cedo os acusados graúdos conseguiram pular fora, numa tragédia com vidas humanas. Em outubro passado, os demais acusados - a denúncia já se encontrava no baixo escalão - foram absolvidos por falta de provas. Pense no caixa da Dersa. Pense em todos os réus do mensalão PSDB-MG que conseguiram pular de galho em galho, entre o Supremo e a primeira instância, sem jamais receber uma sentença de prisão. Pimenta da Veiga, o ministro das Comunicações de Fernando Henrique Cardoso, foi um dos primeiros a contratar Marcos Valério em Brasília. A Polícia Federal encontrou quatro cheques na conta de Pimenta. Nada lhe aconteceu nem acontecerá. No mês que vem, completa 80 anos.

Nada aconteceu a Fernando Henrique, que ainda estava no governo quando passou o chapéu entre grandes empresários para fundar o Instituto FHC, antecipando uma prática que seria tratada como crime quando foi repetida por Lula. A diferença é que Lula já havia saído do governo quando chegou sua vez e hoje é réu em cinco casos da Lava Jato, inclusive por um apartamento que não é seu e um sítio que também não é, ao contrário da fazenda que Fernando Henrique comprou junto com o tesoureiro Sérgio Motta. 

É isso aí, meus amigos. Uma dor de tirar o fôlego. Impossível de fazer a crítica de ontem sem o anteontem. 

Na pele dos outros, a injustiça é uma marca que não deixa manchas, uma dor que não dói, uma vergonha que não produz indignação. Na dúvida, basta, humildemente, abrir as páginas de "Felicidade Fechada," de Miruna Genoíno, para saber como é conviver com isso no Brasil de hoje. Outro caminho é "Até Quarta, Isabella " de Francisco Julião, para saber como era isso depois do golpe de 64.

Num país onde a justiça de exceção tornou-se a regra, o cumprimento da lei torna-se uma questão de amigos, de preferência, de atos arbitrários, de favores e, é claro, de opções políticas. O que se viu ontem foi a continuidade de um longo processo mantido atrás das cortinas da justiça-espetáculo. 

Não custa recordar o básico. Na última década, quando a consolidação eleitoral do projeto Lula-Dilma criou um compreensível receio das urnas por parte dos adversários, nossos tribunais passaram a ser endeusados como uma espécie de Poder Moderador, numa visão incongruente com a democracia, pois em nossa Constituição este papel pertence a soberania popular, onde o eleitor e só ele tem a palavra final sobre os destinos do país, inclusive para instituir e afastar governos.

A Carta de 1988 descreve uma democracia que dispensa a coroa de dom Pedro e, de modo explícito, a espada de Deodoro, aquela das intervenções militares. Pela mesma razão não se cogita, como já foi lembrado tantas vezes nestes espaço, a "ditadura das togas", aquela que é "pior que a das fardas pelo crédito de que dispõe na sociedade," nas palavras de um antigo ministro do STF. 

A votação 4 a 3 expressou a força de uma ditadura que não presta contas - nem a si própria.

Foi um soco no rosto de quem não quer ver a realidade e cultiva ilusões de uma Justiça de exceção igual para todos por causa de suas estátuas com olhos vendados.

Para defender o mais reacionário governo civil da história republicana, proprietário, em apenas um ano, de uma terrível folha de serviços prestados, Gilmar Mendes & amigos voltaram atrás no que disseram e fizeram - sem ruborizar, sem pedir desculpas. Vamos nos entender sobre a dupla encenação.

Durante dois anos e meio, construiu-se uma farsa jurídica destinada a emparedar o governo Dilma, dissolver seu governo e, acima de tudo, desmoralizar a legitimidade do voto popular. Descontentando os piores momentos da Justiça eleitoral - como as tramas da família Sarney para derrubar desafetos, no Maranhão e na ex-colônia do Amapá - nunca se viu um caso dessa dimensão.

"Aponte-me um homem e eu direi seu crime", dizia Andrey Vyzhinzky, o promotor dos Grandes Expurgos de Moscou, no período Stálin.

O retrato final é uma caricatura do desmando, sempre autorizado, tolerado e estimulado com holofotes até aqui. Aquelas que pareciam provas de grande utilidade para condenar a presidente indesejável se transformaram em matéria sem serventia para atingir o substituto, amigo da turma, sócio desse esforço para jogar o país no abismo. De duas, uma. Ou eram pura invencionice. Ou se manipulou, politicamente, um inquérito quando interessava atingir o projeto que Dilma representava. "Para encher o saco,"como disse Aécio. 

Chocante? Talvez.

Mas um balanço honesto mostra que não pode haver a crítica a ontem sem a autocrítica pelo anteontem. 

Também aponta um caminho para o amanhã.

Para quem compreende a necessidade de encerrar o governo Temer, o 4 a 3 lembra a inutilidade de se acreditar numa operação de gabinete - mesmo exibida ao vivo pela TV - para dar resposta a um problema tão grave.

Os interesses materiais que Temer encarna são grandes demais, explícitos demais, para serem derrotados de uma hora para outra, sem que a mudança tenha uma garantia absoluta de continuidade. 

O placar de 4 a 3 mostrou a profunda divisão do patamar de cima. 

Não há atalhos - ao menos no momento - para uma luta dessa envergadura, que envolve o futuro de uma nação com 204 milhões de pessoas, a oitava economia do planeta e uma bela história de lutas difíceis.

A disputa se dará na rua e é pela participação nos próximos atos de protesto, inclusive na greve geral da sexta-feira, 30 de junho, que o país irá livrar-se do flagelo Temer. É nestes momentos que cada um poderá mostrar até onde vai a indignação diante de Temer e do resultado de ontem.


Onde:

http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/300599/TSE-escancara-humilhante-parcialidade-da-Justi%C3%A7a.htm