terça-feira, 27 de novembro de 2018

Autocrítica

Charge de Aroeira


O PT precisa fazer autocrítica, mas não a autocrítica que a Folha quer. 

Joaquim de Carvalho

Um dia depois de publicar uma entrevista de Fernando Haddad, a Folha de S. Paulo diz o que pensa sobre o ex-candidato a presidente: um político em dificuldade diante do fracasso.
“Quando seu nome é Fernando Haddad e seu partido é o PT, a dificuldade apenas aumenta”, escreveu.
A Folha de S. Paulo tem o direito de manifestar em editorial o que pensa sobre Haddad ou qualquer político ou fato da vida nacional.
Pode espinafrá-lo se quiser, mesmo depois de ter lhe dado espaço generoso.
Não há aí nada de deselegante.
Mas, pela importância da publicação e seus dias de glória no passado, o jornal poderia fazê-lo com um pouco mais de inteligência. Em vez disso, se socorre a clichês.
Poderia ter aprofundado a análise sobre as razões da derrota eleitoral de Haddad, para alcançar o respeito de leitores mais qualificados.
Em primeiro lugar, o que a Folha chama de derrota foi uma vitória.
O candidato do PT se chamava Luiz Inácio Lula da Silva e, até prova em contrário, seria hoje presidente eleito não tivesse sido retirado da disputa pela violência institucional poucas vezes vistas na história do país.
Lula foi condenado sem provas, preso antes que fossem julgados seus recursos nas cortes superiores e proibido de dar entrevista ou se manifestar por vídeo sobre política.
O Brasil rasgou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de que era signatário, ao rejeitar a liminar do Comitê de Direitos Humanos da ONU que determinava o respeito ao direito de Lula de se candidatar.
Sem possibilidade de lançar Lula, o PT optou por Haddad, que era o vice.
O candidato teve três semanas para fazer campanha e, ainda assim, obteve no primeiro turno mais de 30 milhões de votos, o dobro do terceiro colocado, e foi para o segundo turno, quando conquistou mais de 47 milhões de votos.
Elegeu a maior bancada da Câmara de Deputados e o maior número de governadores, quatro, três deles no primeiro turno.
Como se pode falar em fracasso?
Seu desempenho eleitoral foi positivo sob qualquer aspecto, especialmente se se considerar que o PT é uma organização política sob intenso ataque de setores do Judiciário, Ministério Público Federal e a imprensa corporativa, a velha imprensa.
Ataques que se sustentam em mentiras, como a de que os governos Lula e Dilma jogaram o país no abismo com “ideias irresponsáveis e ultrapassadas” colocadas em prática.
Não é o que mostram os números. O PIB foi de R$ 1,48 trilhões em 2002 para R$ 4,84 trilhões em 2013.
No mesmo período, a renda per capita aumentou de R$ 7,6 mil para R$ 24,1 mil.
A dívida líquida do setor público caiu de 60% do PIB para 34% do PIB. A safra agrícola passou de 87 milhões de toneladas/ano para 188 milhões de toneladas.
As reservas internacionais passaram de 37 bilhões para 375,8 bilhões de dólares, e se mantêm nesse patamar, o que evita que o Brasil mergulhe em uma crise cambial.
O desemprego em 2002 era de 12,2%. Em 2014, estava em 5,4%.
O valor de mercado da Petrobras aumentou, o lucro do BNDES, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil também cresceu.
O salário mínimo passou de 80 dólares para 300 dólares. Há outros números exuberantes, mas se tornaria enfadonho relacionar todos aqui.
Estes bastam para mostrar que o fracasso só existe na cabeça daqueles que fabricaram um ambiente para tentar derrotar um projeto político vitorioso, representado primeiramente por Lula, depois por Dilma.
As coisas começaram a mudar efetivamente em 2014, ano de estréia da Lava Jato e da ofensiva eleitoral para tirar Dilma, e colocar Aécio Neves em seu lugar.
Esse ataque prejudicou, de fato, a imagem do Brasil no exterior e, em consequência, o desempenho junto aos agentes econômicos.
Antes o Brasil era visto como um foguete decolando.
Essa imagem foi usada pela revista Economist, a cartilha liberal do planeta, que, a partir de 2014, passou a ver o ambiente politico conturbado como uma ameaça à estabilidade e ao crescimento econômico do país.
A Folha erra na análise, mas acerta num ponto: o PT precisa fazer autocrítica, mas não a autocrítica defendidas pelo jornal.
Depois da apertada vitória em 2014, quando enfrentou juízes e a imprensa, o PT aceitou as bandeiras do candidato derrotado, como o ajuste fiscal e a faxina da corrupção.
Óbvio que o ajuste fiscal era necessário e o combate a corrupção, uma luta permanente. Mas, a rigor, tanto em uma área quanto em outra, o partido cumpria seu dever razoavelmente, indo além de seus antecessores.
O fortalecimento das instituições republicanas e os instrumentos para combater a corrupção, como a delação premiada, foram legados de Lula e Dilma.
O PT não poderia é perder a interlocução com o povão. Não poderia passar a imagem de que, derrotando Aécio Neves, tinha herdado o projeto dele.
É como se Aécio tivesse vencido — o primeiro ministro da Fazenda escolhido por Dilma, Joaquim Levy, mesmo sendo um técnico competente, tinha o perfil de ministro que faria parte do governo do candidato derrotado.
Já estava em curso um movimento para tirar Dilma Rousseff na mão grande, no tapetão, o terceiro turno das eleições.
Em vez de se aproximar de sua fonte de poder, o eleitor brasileiro, o governo Dilma apostou suas fichas na luta institucional.
Deveria ter feito isso, mas ao mesmo tempo se fortalecido junto às classes populares brasileiras. Este foi um erro e é preciso reconhecê-lo.
Seria uma autocrítica, mas muito diferente daquela que querem forças políticas como a velha imprensa brasileira.
Estas gostariam de ver os petistas de joelhos, com um cartaz bem grande onde se leria “Errei e estou arrependido”, como acontecia nos tempos da Inquisição.
Onde:
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-pt-precisa-fazer-autocritica-mas-nao-a-autocritica-que-a-folha-quer-por-joaquim-de-carvalho/

terça-feira, 20 de novembro de 2018

A "nova" cara






A nova cara do presidencialismo


Gabriel Cohn


Durante longo período o presidencialismo brasileiro foi caracterizado como sendo de “coalizão”, aquele arranjo no qual o centro do Executivo negocia cada passo com uma nuvem de partidos ou consórcios de interesse pouco significativos por si mesmos, mas dotados do inestimável recurso que é o poder de veto. Pois bem, isso que agora vemos ser construído, tudo indica que em consonância a plano muito bem pensado em escala transnacional, é regime bem diferente. Pode ser denominado, à falta de outro termo, “presidencialismo de ocupação”. Em análise recente Wanderley Guilherme dos Santos usou o termo “ocupação” para caracterizar o empenho do novo governo em tratar opositores como “estrangeiros”. Nisso aponta aspecto importante do processo em curso e se aproxima da concepção que aqui proponho, embora o faça da perspectiva de específico governo, quando aqui se trata de algo que supera de longe a ínfima figura de Bolsonaro e sua trupe. Não se trata de mera ocupação de postos e de acesso a recursos. É algo mais fundo que se vai formando, e sua lógica não é propriamente política, pelo menos não enquanto a organização e o exercício do poder forem pensados num registro democrático. Trata-se de lógica copiada da estratégia militar.

Que ninguém se iluda. O que se ensaia no Brasil não é mera aberração sustentada por governo ocasional. Tem importância planetária, como tudo aquilo que cerca a bem-sucedida campanha eleitoral e o modo como se busca consolidar o poder uma vez conquistado (o termo é apropriado). A arquitetura do conjunto sugere a emergência de um projeto muito mais amplo do que o caso brasileiro. É verdade que o Brasil oferece cenário exemplar para isso. Para além dos Estados Unidos de Trump, constitui caso decisivo, pela magnitude e importância no concerto internacional, apesar de tudo. Sobretudo, permite testar a combinação entre o direcionamento high-tech de processo eleitoral e a implantação de formato de governo conforme estratégia política peculiar. Consiste ela em tratar a nação como um território a ser ocupado, em dois passos. Primeiro, a conquista de apoio no interior da sociedade, de preferência mediante campanha eleitoral com efeito legitimador. Em seguida, a ocupação mediante movimento de pinça executado por duas forças poderosas agindo em conjunto (sendo que neste ponto reside o essencial e também o ponto vulnerável de tal operação). Uma delas consiste na concentração do poder de gestão e planejamento econômicos em um núcleo ministerial concentrado e com elevada autonomia. A outra é formada por igualmente concentrado núcleo de condução e legitimação mediante o manejo dos instrumentos legais, repressivos e de propaganda disponíveis ou a serem construídos. Ambas convergem na tarefa de liquidação das “forças inimigas”, sejam elas partidos ou movimentos no interior da sociedade. Ao mesmo tempo, colocam o chefe de governo em situação polarizada. Ou bem ele concentra poder suficiente para se impor aos seus superministros, e nesse caso abre-se o cenário para ditadura franca (e indesejada no modelo), ou então fica reduzido por eles a papel de mero defensor e executivo de suas diretrizes. Nesse modelo o presidente (ou quem executa tal função, como na variante Putin) opera em cenário extremado, de alta polarização, como que operando com valores “zero” ou “um”, numa “digitalização” da política bastante afim ao uso da tecnologia informática.

Fascismo, como imaginam alguns? Não, Bolsonaro nada tem a ver com Mussolini (de quem no máximo poderia ser pálida caricatura), muito menos com Hitler. Não representa movimento apoiado em Estado intervencionista em todas as áreas (avesso, portanto, à lógica do mercado irrestrito), nem promotor de mobilização social dirigida com liderança concentrada em figura saliente, e nem sequer exibe ideologia própria. Se quisermos traçar paralelo histórico da maior relevância no momento atual, seu governo evoca outra figura dos sinistros anos 30 do século passado. Trata-se de Goebbels, o mago da comunicação e da propaganda nazista, sempre pronto a fazer uso da mais avançada tecnologia para comprovar sua tese de que uma mentira (hoje os artífices da novilingua preferem “fake news”) continuamente repetida vira verdade. O novo mundo, aquele que se busca criar na era Trump (e Putin) é o mundo de Goebbels, a mais importante figura política da extrema direita no século XX. Nele não há lugar para déspotas desnecessários ou incômodos e, sobretudo, acidentais. Contudo, não será possível governar só com o lado soft do exercício do poder. Permanecendo em nossa analogia histórica, todo Goebbels precisa de um Himmler, o homem que controla os corpos combatentes de elite (SS, no caso nazista) e o conjunto do aparelho repressivo (Gestapo, no mesmo caso), com o respaldo de um Judiciário complacente, quando não cúmplice. Precisa, pois, de agente capaz de concentrar em si todo o aparato da normatização e da força para implementa-la. Não está claro quem faz o papel de Goebbels no caso brasileiro, nem parece que seja local, talvez esteja na terra de Trump. É claro, porém, que Moro nada tem de Himmler, salvo a perturbadora analogia de posição e função. Quanto ao fascismo, trata-se de regime centrado em Estado inequivocamente forte e agressivamente interventor, sem traço de qualquer liberalismo, antigo ou neo. Um Estado que faz questão de tornar evidentes a forma e o exercício do poder, em contraste com aquilo que se desenha aqui, bem ao gosto de uma sociedade adepta ao jogo do faz de conta. Brutalidade criminosa não falta, nem falas ameaçadoras mais destinadas a desviar a atenção do que a dirigir. O importante nesse modelo é que o trabalho sujo é como que terceirizado, deixado ao encargo de setores da chamada sociedade civil e dos sicários que para tanto forem contratados.

Analogias históricas são instrutivas, desde que não levadas ao pé da letra. Há momentos em que trazem à tona semelhanças e afinidades muito nítidas entre regimes autoritários ontem e hoje (e autoritarismo é o que menos falta no modelo que se vai construindo, importa descobrir a forma particular que vai assumindo em cada caso). Exemplo eloquente daquelas afinidades é dado pela insistência do atual presidente quando candidato no lema “Meu partido é o Brasil”. Parece inofensivo, mas nele ressoa tudo o que há de mais assustador na linguagem e na prática da extrema direita: a afirmação da compacta e homogênea unidade nacional, que ninguém pode perturbar por atos ou por palavras, sob risco de ser excluído do todo unitário ou, no limite, exterminado (como já se ameaçou mais de uma vez, em perigosas bravatas). Associado a dois outros itens daquele complexo temático, o da identificação no interior da sociedade da entidade responsável por todas as mazelas (uma etnia, por exemplo, ou um específico partido) e o da exigência de “limpar” a nação mediante a eliminação de impurezas como a “imoralidade” e a “corrupção”, temos uma temática explosiva, pronta a causar sérios problemas se não for neutralizada em tempo.

O ponto essencial, contudo, não é esse, da comparação entre regimes distantes no tempo, embora com traços comuns persistentes. Ter clareza quanto a isso é recomendável, desde que não se perca de vista o essencial. É para a frente, para o futuro próximo que se deve dirigir o olhar daqueles resistem à nova ordem em gestação. Por uma razão decisiva: estamos diante da emergência de algo novo, de modo peculiar de organização e exercício do poder em escala planetária, e para cuja consolidação o caso brasileiro é da maior importância, por tudo aquilo que este país representa. É de se lembrar, neste ponto, que o jogo, aqui ou nos Estados Unidos e alhures, só começou. No Brasil o passo decisivo para sua definição é dado pelo processo eleitoral em 2022, com todas suas promessas e ameaças. Estamos no centro, por razões que bem gostaríamos de dispensar. Tanto mais se torna vital a lucidez, a abertura para o novo também na sua face sombria, a atenção e a inteligência alerta, móveis, que saibam enfrentar o pior risco, o de perder o tempo da história.

*Gabriel Cohn é professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP

Onde:


https://diplomatique.org.br/a-nova-cara-do-presidencialismo/?fbclid=IwAR3oqnNtyig0R6M8E-kiimGfbZ5ZuPoBLxRjbOFujGUASeo5zxYxWfEEiqY







quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Enquanto durar o negror



ENVIO

Poeta:
Enquanto dura o negror
tape os buracos da barca
até que venha o fulgor


ENDREÇA

Poeta:
Mentre dura la foscor
tapa els forats de la barca
per quan vingui la claror.


Joan Brossa - Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides -
in Poemas Civis - Ed. Sette Letras

Amor Humor: Meu tipo de Messias chegará rindo e contando piadas

Poema de Oswald de Andrade

O acaso me colocou diante desses fragmentos de conversa de  Amós Oz, anotados em um caderninho esquecido na gaveta. Provavelmente, são respostas dadas em uma entrevista. Infelizmente, não sei quando, onde, para quem.  Palavras que, anos atrás,  suscitaram reflexões, questionamentos e reconhecimentos, daí as anotações feitas de próprio punho e que voltam com toda força e atualidade trazidas pelos clamores do inconsciente e pela necessidade de compreensão do processo histórico atual.

Temos vários pontos em comum com a situação descrita por Amós Oz: a divisão da população em campos aparentemente inconciliáveis, o crescimento da intolerância e do ódio, a escalada do fundamentalismo religioso, a irrupção da violência política de uma forma perigosa e nova, que não descarta do horizonte os temores de uma ruptura ainda mais profunda, em termos de guerra civil e ditadura civil-militar.

Temos também diferenças de contexto, cultura, História e conjuntura. Nacionalismo, por exemplo, é uma delas. Paralelo às camisetas verde-amarelas da FIFA e aos slogans do tipo "a nossa bandeira jamais será vermelha", nunca o entreguismo e a subserviência foram tão grandes na nossa História. O golpe parlamentar-jurídico-midiático-supranacional dado em 2016 representa uma ferida mortal em nossa soberania e democracia. As nossas riquezas, as empresas públicas, a maior reserva de petróleo descoberta no século XXI, a matriz energética, a segurança hídrica, a Amazônia, a engenharia nacional estão sendo destruídas e oferecidas na bacia das almas para a voracidade dos grandes especuladores internacionais. O governo Bolsonaro dará continuidade a esse projeto de forma ainda mais veloz e radical.

A escalada do neoliberalismo como projeto de dominação, das guerras híbridas como método de operação e das redes sociais e dos recursos digitais como forma de execução são elementos novos que também marcam diferenças.

Enfim, mutatis mutandis, é preciso pensar fora da caixinha e resgatar a boa tradição do livre pensar, do debate de ideias e da racionalidade.

Palavras de Amós Oz:

...Acho que em seus (?) próprios textos, assim como nos de Nadine (Gordimer? Grifo meu.) e nos meus existe esta interpenetração de público e privado, de história e intimidade, ideologia e sensualidade. Talvez pelo fato de nós três vivermos em países cuja História - a maldita História - penetrou nas moléculas mais privadas da vida, em que os horrores políticos ocorrem não apenas nas telas da TV, mas em nossas próprias vidas.

...Estive no campo de batalha duas vezes na vida, em 1967 e novamente em 1973, quando concluí que o maior perigo não está nas armas e bombas, nem nos governos e militares, mas no coração humano: agressão,  fanatismo, prepotência, excesso de zelo, incapacidade de imaginar, incapacidade de ouvir, de rir - principalmente de rir de nós mesmos.

...Paciência! Precisamos de paciência!

...O senhor pergunta a minha opinião sobre quais seriam os meios para difundir a tolerância. Bem, não tenho uma fórmula definida...

E talvez este seja o momento ideal para todas as escolas do mundo criarem a disciplina Fanatismo Comparado, porque ele paira sobre nós. 

Não apenas nos lugares óbvios, como a TV, onde multidões excitadas mostram os punhos e gritam slogans de furor religioso ou nacionalista. Não: está em toda parte, pairando sobre nós. Já vi tabagistas que poderiam queimar vivos todos os que fumam. Conheço vegetarianos que o comerão vivo, por comer carne. Conheço até pacifistas que poderiam me dar um tiro na cabeça simplesmente porque tenho estratégias um pouco diferentes para alcançar a paz entre palestinos e israelenses.

...Se o senhor me prometer que me acompanhará com uma boa dose de ceticismo, posso até lhe dizer que descobri - pelo menos em princípio - a cura para o fanatismo. A cura é ... o bom humor. Nunca vi um fanático bem humorado, nem alguém bem humorado se tornar fanático. Por isso, se eu conseguisse comprimir bom humor em cápsulas e convencer populações inteiras a ingeri-las, assim imunizando-as contra o fanatismo, poderia ter conseguido um título em medicina, em vez de literatura.

...Em outras palavras, meu tipo de Messias chegará rindo e contando piadas. Mas, pensando melhor mesmo a ideia de comprimidos de humor e de fazer toda a humanidade tomá-los está ligeiramente contaminada de fanatismo. O fanatismo é muito contagioso. Pode-se pegá-lo no próprio ato de tentar curá-lo. Conheço o perigo de se tornar um fanático anti-fanatismo. Assim como a violência, o fanatismo pode se disfarçar de muitas formas.

...Todo tipo de redentores, nenhum deles tolera compromissos, quer sempre a redenção total. Os idealistas consideram o compromisso uma espécie de oportunismo, de falta de princípios de honestidade, de integridade moral. Em meu vocabulário particular, porém, a palavra compromisso é sinônimo de "vida": onde há vida, há infinitos compromissos. O oposto do compromisso não é integridade, mas fanatismo e morte.
...Um compromisso que garanta a ambos os lados apenas parte do que cada um considera sua propriedade...Ambos os lados deve admitir seus erros.

...A tolerância deve se tornar intolerante para se proteger da intolerância?

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Tá escrito


Tá Escrito (Carlinhos Madureira / Gilson Bernini / Xande de Pilares) # Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso 

sábado, 27 de outubro de 2018

Acima de tudo a democracia: esse limite não se ultrapassa




Acima de tudo a democracia

Flávia Oliveira

A democracia é inegociável. A democracia é inegociável. A democracia é inegociável. Repito a frase como mantra do compromisso que, entrante na vida adulta, firmei ao tornar-me jornalista profissional. A ênfase guarda também a perplexidade por constatar que o Brasil dedicou a semana derradeira da corrida presidencial a escorar o regime que parecia solidamente assentado há três décadas. O segundo turno seria tempo de detalhar propostas para içar a pátria do mar de crises: do desemprego agudo à saúde precária, da Previdência insolvente à segurança pública em colapso, da educação combalida à economia emperrada. Mas, às vésperas do 28 de outubro, batuco o teclado para ratificar o velho juramento. Defenderei a democracia.
À moda Raul Seixas, confesso, abestalhada, que estou decepcionada. Mas não silencio. Queria ter, como tantos parentes, amigos, colegas, desconhecidos, o dom de naturalizar ideias brutais considerando-as esdrúxulas. Quisera cobrir-me com o manto de invisibilidade dos isentões. Mas integro o time dos democratas convictos, dos defensores dos direitos humanos como expressos na quase septuagenária declaração universal. Sendo assim, não tergiverso.
Pode ser que os anos de jornalismo econômico, 26 ao todo, tenham me emprestado excesso de desconfiança. Aprendi a duvidar de autoridades que precisam vir a público avisar que tudo está bem. Nos anos 1990, dia sim, dia também, membros do então governo se postavam a jurar em frente às câmeras que o sistema financeiro era sólido e o câmbio, fixo. Alguns dos maiores bancos do país foram varridos do mapa, e a livre flutuação do dólar, desde 1999, não me deixa mentir.
É por isso que, quando a presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Rosa Weber, convoca uma entrevista coletiva num domingo para dizer que as instituições estão funcionando, eu sinto que não. Principalmente, se o candidato vencedor do pleito no primeiro turno e seu círculo mais próximo colecionam declarações que põem em dúvida o sistema de votação e ameaçam o Judiciário. Nos últimos dias, o país foi tomado, de Norte a Sul e além-fronteiras, pelo repúdio às ameaças de Jair Bolsonaro (PSL) e filhos — um deles parlamentar reeleito, não jovem inconsequente — ao Supremo Tribunal Federal, à imprensa e a adversários políticos. Pronunciaram-se o presidente do STF, Dias Toffoli, e os ministros Celso de Mello e Alexandre de Moraes, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, defensores de direitos humanos, instituições da sociedade civil, entidades de defesa da liberdade de imprensa, jornais estrangeiros. Algo vai mal quando tanta gente precisa apelar por independência dos Poderes, liberdade de expressão e convivência com o contraditório numa democracia (supostamente) forte. E vai pior quando exatamente metade da população vê risco de o Brasil ser submetido a uma nova ditadura, como revelou o Datafolha em pesquisa divulgada uma semana atrás.
Favorito nas pesquisas de intenção de voto, o presidenciável Bolsonaro suavizou o discurso nas últimas horas, talvez por ter percebido o quão longe foi sua pregação linha-dura. Mas seu glossário, não é de hoje, comporta expressões afeitas mais ao autoritarismo que ao diálogo; à intolerância, em vez da proteção às minorias (indígenas, negros, mulheres, LGBTQs); à violência, não à cultura de paz. O colunista Elio Gaspari escreveu, na última quarta-feira, no GLOBO e na “Folha de S.Paulo”: “Há casos em que o cidadão tem que traçar a linha que não atravessará”. No meu caso, a fronteira imaginária separa direitos humanos da barbárie; diversidade da supremacia; democracia do autoritarismo. Daqui não passo.
Onde:
https://oglobo.globo.com/opiniao/acima-de-tudo-democracia-23186019


quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Não adianta pedir desculpas daqui a 50 anos

Charge de Aroeira


Não adianta pedir desculpas daqui a 50 anos

Eleonora de Lucena

Ninguém poderá dizer que não sabia. É ditadura, é tortura, é eliminação física de qualquer oposição, é entrega do país, é domínio estrangeiro, é reino do grande capital, é esmagamento do povo. É censura, é fim de direitos, é licença para sair matando.

As palavras são ditas de forma crua, sem tergiversação –com brutalidade, com boçalidade, com uma agressividade do tempo das cavernas. Não há um mísero traço de civilidade. É tacape, é esgoto, é fuzil.

Para o candidato-nojo, é preciso extinguir qualquer legado do iluminismo, da Revolução Francesa, da abolição da escravatura, da Constituição de 1988.

Envolta em ódios e mentiras, a eleição encontra o país à beira do abismo. Estratégico para o poder dos Estados Unidos, o Brasil está sendo golpeado. As primeiras evidências apareceram com a descoberta do pré-sal e a espionagem escancarada dos EUA. Veio a Quarta Frota, 2013. O impeachment, o processo contra Lula e sua prisão são fases do mesmo processo demolidor das instituições nacionais.

Agora que removeram das urnas a maior liderança popular da história do país, emporcalham o processo democrático com ameaças, violências, assassinatos, lixo internético. Estratégias já usadas à larga em outros países. O objetivo é fraturar a sociedade, criar fantasmas, espalhar medo, criar caos, abrir espaço para uma ditadura subserviente aos mercados pirados, às forças antipovo, antinação, anticivilização.

O momento dramático não permite omissão, neutralidade. O muro é do candidato da ditadura, da opressão, da violência, da destruição, do nojo.

É urgente que todos os democratas estejam na trincheira contra Jair Bolsonaro. Todos. No passado, o país conseguiu fazer o comício das Diretas. Precisamos de um novo comício das Diretas.

O antipetismo não pode servir de biombo para mergulhar o país nas trevas.

Por isso, vejo com assombro intelectuais e empresários se aliarem à extrema direita, ao que há de mais abjeto. Perderam a razão? Pensam que a vida seguirá da mesma forma no dia 29 de outubro caso o pior aconteça? Esperam estar livres da onda destrutiva que tomará conta do país? Imaginam que essa vaga será contida pelas ditas instituições –que estão esfarrapadas?

Os arrivistas do mercado financeiro festejam uma futura orgia com os fundos públicos. Para eles, pouco importam o país e seu povo. Têm a ilusão de que seus lucros estarão assegurados com Bolsonaro. Eles e ele são a verdadeira escória de nossos dias.

A eles se submete a mídia brasileira, infelizmente. Aturdida pelo terremoto que os grandes cartéis norte-americanos promovem no seu mercado, embarcou numa cruzada antibrasileira e antipopular. Perdeu mercado, credibilidade, relevância. Neste momento, acovardada, alega isenção para esconder seu apoio envergonhado ao terror que se avizinha.

Este jornal escreveu história na campanha das Diretas. Depois, colocou-se claramente contra os descalabros de Collor. Agora, titubeia –para dizer o mínimo. A defesa da democracia, dos direitos humanos, da liberdade está no cerne do jornalismo.

Não adianta pedir desculpas 50 anos depois.

Onde:

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/10/nao-adianta-pedir-desculpas-daqui-a-50-anos.shtml

sábado, 20 de outubro de 2018

Poder econômico, mentiras e difamações fraudam as eleições


Charge de Aroeira


As pistas do método 'Cambridge Analytica' na campanha de Bolsonaro

André Barrocal

Alta de Bolsonaro e da rejeição a Haddad coincide com “roubo” de dados do Facebook. Empresa de cibersegurança fez alerta às vésperas do primeiro turno

A campanha do presidenciável da extrema-direita, Jair Bolsonaro (PSL), é uma guerrilha virtual. O Ministério Público investiga se há um “esquema industrial” e pago de disseminação de mentiras via internet, as fake news, o que é crime eleitoral. A Folha noticiou que empresários bolsonaristas pagam até 12 milhões de reais para difamar o PT via Whatsapp, o que também é crime, pois este ano está proibido o financiamento patronal de candidatos.
Será que o bolsonarismo está por trás de um certo acontecimento de meados de setembro,  um momento em que o seu rival no duelo final de 28 de outubro, Fernando Haddad, do PT, mergulhava na campanha e despontava como favorito?

Em 25 de setembro, o Facebook anunciou ter sido hackeado. Em 12 de outubro, informou que a invasão começou provavelmente em 14 de setembro. Foram “roubados” os dados de 400 mil usuários e, a partir desse “roubo”, os hackers obtiveram informações sobre 30 milhões de pessoas.
Dentre as vítimas, 29 milhões tiveram descobertos o número de telefone e o email. De metade, os hackers conseguiram saber também: o nome da pessoa, gênero sexual, idioma, estado civil, religião, cidade natal, data de nascimento e 15 últimas pesquisas feitas na internet.
Há relação entre o hackeamento do Facebook e a guerrilha digital de Bolsonaro?
A campanha do ex-capitão repete estratégias verbais e operacionais de Donald Trump na disputa pela Casa Branca em 2016. Um dos filhos de Bolsonaro, Eduardo, esteve em agosto, em Nova York, com o principal estrategista de Trump na campanha, Steve Bannon.
A principal maneira de as mensagens políticas de Bannon chegarem aos eleitores e influenciá-los dependeu de “roubo” de dados do Facebook. Uma operação via Cambridge Analytica (CA), um escândalo que veio a público na imprensa mundial em março passado.
A CA foi criada em 2014 por um bilionário americano, Robert Mercer, para ajudar políticos conservadores nos EUA. Um dos colaboradores da empresa, Cristopher Wylie, foi quem deu a resposta sobre como influenciar da maneira mais potente os eleitores americanos.
Segundo Wylie, era preciso montar um perfil psicológico do eleitorado, e a melhor fonte para isso era o Facebook. Ele sabia que na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, havia pesquisas psicosociais a partir do comportamento das pessoas no Facebook.
Um dos pesquisadores, Aleksandr Kogan, topou criar um aplicativo de celular e pagar pessoas para testá-lo. O uso do app permitiu a Kogan “roubar” dados privados de cerca de 280 mil usuários do Facebook e, com base neles, montar um banco “psicológico” sobre 50 milhões de pessoas. Ele recebeu 1 milhão de reais pelo serviço, uma ninharia perto do valor político do seu “produto”.
E o Brasil com isso? A CA aterrissou aqui em 2017. Fez parceria com um publicitário baiano, André Torretta, da Ponte Estratégia, e daí nasceu a CA Ponte. Em entrevistas, Torretta dizia que teria de montar um banco de dados, pois não havia uma base brasileira criada a partir do Facebook. A equipe de Bolsonaro sondou a CA Ponte para trabalhar pelo deputado, mas Torretta foi contra.
Quando estourou o escândalo mundial da CA, em março passado, o Ministério Público brasileiro abriu um inquérito sobre a CA Ponte e chamou Torretta para depor. O MP queria saber sobre o banco de dados da empresa. A investigação corre até hoje sob sigilo.
Será que o hackeamento do Facebook em setembro foi feito para montar um banco psicosocial de dados para uso em favor de Bolsonaro? CartaCapital  questionou o Facebook sobre a nacionalidade das vítimas dos hackers, mas a empresa não quis informar. Diz apenas que colabora com o FBI, a Polícia Federal dos EUA, na investigação do caso. É  sabido, porém  que há muitos brasileiros entre  os atingidos. 
Recorde-se: o hackeamento aconteceu entre 14 e 25 de setembro. A evolução de Bolsonaro nas pesquisas mostra que ele mudou de patamar depois disso.
No Ibope, por exemplo, ele oscilou em torno de 28% entre 11 e 26 de setembro. A partir do dia 1o de outubro, mudou de patamar. Rompeu a barreira dos 30%, alcançou 31% 
Não foi só isso. Enquanto Bolsonaro subia nas pesquisas, a rejeição de Haddad fazia o mesmo. O petista havia entrada oficialmente na campanha em 11 de setembro, data em que o PT o substituiu na Justiça eleitoral como candidato no lugar de Lula.
De 11 a 26 de setembro, a rejeição a Haddad variou entre 23 e 27%. A partir de 1o de outubro, mudou de patamar: chegou a 38%  
Nesse período em que Bolsonaro mudou de patamar nas pesquisas e a rejeição a Haddad também, houve as manifestações #elenão. Foi em 29 de setembro. Elas podem ter se revertido a favor do deputado do PSL, mas talvez uma operação na web com dados do Facebook possa ter ajudado.
Haddad já disse publicamente que sua imagem foi abalada por uma campanha difamatória, movida a mentiras, da parte das equipe de Bolsonaro. Em grupos de Whatsapp e no Facebook, circularam mensagens a apontar o petista como uma espécie de depravado anticristão, daí a repulsa dos evangélicos por ele ter disparado.
Será que essa ação difamatória, lastreada naos atos #elenao, foi bem sucedida graças a um banco psicosocial de dados de brasileiros montado a partir do hackeamento do Facebook?
Em 4 de outubro, três dias antes do primeiro turno da eleição daqui, uma empresa americana de cibersegurança, a FireEye, parceira do governo dos Estados Unidos na investigação de ameaças ao Tio Sam, informou à Folha que havia hackers tentando interferir na eleição brasileira. Seria através das redes sociais e da manipulação de medos das pessoas.
Manipulação de medos foi o que a Cambridge Analytica fez na eleição de Donald Trump. Quem disse isso foi Christopher Wylie, aquele nerd que ajudou a municiar a guerrilha trumpista com a criação de um banco psicosocial de dados.
“Nós exploramos o Facebook para colher milhões de perfis de pessoas. E construímos modelos para explorar o que sabíamos sobre eles e direcionar seus demônios interiores. Essa foi a base em que toda a empresa (Cambridge Analytica) foi construída”, disse Wylie no jornal britânico The Guardian de 17 de março passado. 
A atuação da CA na eleição americana de 2016 tem sido investigada nos EUA. O ponto de partida das investigações é se teria havido interferência de um governo estrangeiro, no caso, o russo.
Hoje com uns 35 anos, Aleksandr Kogan, o pesquisador da Universidade de Cambridge que criou o app de “roubo” de dados do Facebook, nasceu na antiga União Soviética. Foi em uma região que hoje é um país independente, a Moldávia, situada na fronteira entre Ucrânia e Romênia
Kogan é descrito como alguém que já foi financiado pelo governo russo em suas pesquisas. Em julho, durante a Copa do Mundo da Rússia, a rede de tevê americana CNN noticiou que os dados do facebook “roubados” com o know-how de Kogan foram acessados de dentro da Rússia.
E no Brasil? Haverá alguma investigação das pistas sobre o uso de métodos da Cambridge Analytica pela campanha de Jair Bolsonaro?
Onde:
https://www.cartacapital.com.br/politica/as-pistas-do-metodo-201ccambridge-analytica201d-na-campanha-de-bolsonaro



quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A verdade existe e vai vencer




2+2=22, KKK é de esquerda e temas como "galera, onde tem blitz?"


Lenio Luiz Streck

Resumo: “Clarinha está lá atrás, esperando as outras malas. Sabe como é, trouxemos muitas coisas de Maiame e vamos passar separados na alfândega; assim é mais difícil de nos pegarem”. Binguíssimo!
As redes sociais revelam a ambiguidade fundamental de nossa condição. Democratizam o acesso à informação, mas também permitem a disseminação de todo tipo de boato e notícia falsa; aumentam muito a possibilidade de diálogo e troca intersubjetiva, mas também reduzem a linguagem, em sua sagrada complexidade, a emojis (repristinando os acadêmicos de Lagado d’As Viagens de Gulliver, que pretendiam trocar as palavras por objetos); facilitam a pesquisa e incitam a curiosidade, mas simplificam tanto o caminho de forma a promover a idiotização e o emburrecimento coletivo. É a nesciontologia que assume lugar dominante.
A culpa, é óbvio, não é das redes sociais em si. Felizmente, ainda — ainda — é possível compartilhar coisas úteis, interessantes, e não só fake news de candidato. Recebi, dia desses, um interessantíssimo vídeo que, depois, descobri tratar-se do curta Alternative Math — Matemática Alternativa.
Recomendo que assistam, de forma que não pretendo transcrever o vídeo todo aqui — o final é hilário e vale a pena. Em vez de perder tempo em uatiszap da família, brigando com o primo imbecil ou a tia que acha que Darwin era um charlatão, assista ao vídeo.
Mas, resumindo (mas não contarei o final), para chegar em meu ponto, é o seguinte: na escola, um menino é repreendido pela professora ao escrever que 2 + 2 = 22. Nada mais normal, certo? Um aluno ou aluna em idade escolar chega na resposta errada, o professor ou professora corrige.
Pois é. Acontece que, talvez, já não mais seja bem assim. Os pais do aluno perguntam à professora: “Ora, quem é você pra dizer que sua resposta é certa, e a dele, errada?” O caso chega na direção da escola, nos outros professores, na mídia local, enfim... Long story short, a professora é demitida e a mídia repercute a demissão de uma “professora ativista que reprime o aluno por suas visões pessoais”.
A distopia do vídeo é genial porque mostra precisamente o estado da arte do direito brasileiro. “Ora, quem é você pra dizer que sua resposta é certa, e a dele, errada?”
Nem preciso dizer que o motivo central de estarmos mergulhados nessa crise judiciária é o relativismo semelhante ao 2+2=22-e-essa-é-a-minha-opinião. Os pais dos alunos venceram aqui no Brasil.
“Ora, quem é você pra dizer que sua resposta é certa, e a dele, errada?” Não é o aluno que está errado. Errada está a professora que enche o saco. Por que 2 + 2 não pode ser 22? Por que é errado sustentar interpretar é um ato de vontade? Por que é errado sustentar que direitos humanos são só para humanos direitos? Ora, pois.
Como chegamos a isso? Como chegamos a esse sushi jurídico? Nós engendramos esse tipo de imaginário em nossa prática jurídica a partir do momento em que aceitamos a tese de que, bem, “tudo é relativo”. “Não há verdades”. “É questão de opinião”. Como no caso do menino, seus pais e a pobre da professora.
Acontece que nem tudo é relativo. Há verdades, e, mais do que isso, há critérios a partir dos quais se pode dizer qual é a verdade. Direitos humanos, direitos fundamentais, devido processo legal são conquistas civilizatórias. Se eu digo que não há verdades, como posso sustentar que é verdade que não há verdades? Se digo que todos mentem, sou um mentiroso; se digo que se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, estou dizendo aos leitores que o que digo nada significa.
Chegamos nessa estupidez institucionalizada porque permitimos que se deflagrasse, no Direito, a ideia de que respeitar o texto da lei significa uma aplicação mecânica, que proíbe a interpretação. Ora, é justamente e somente a partir da interpretação que se chega na verdade! Acreditar na possibilidade da “letra fria” [sic] da lei é coisa ainda do século XIX. Não se trata disso.
Da ideia de que estamos condenados a interpretar não se segue que vale tudo, e que o intérprete seja livre pra atribuir ao texto o sentido que quiser. Interpretar autenticamente significa respeitar a autoridade da tradição a partir da qual se pode chegar na resposta correta.
A quem interessa essa ideia de que se pode dizer qualquer coisa? É simples. Àqueles a quem cabe dizer essa coisa, seja ela qual for. Engana-se quem acha que o relativismo é uma arma da democracia, que permite a pluralidade de ideias; é justamente o contrário: é o relativismo que autoriza que, aquele que detém o poder, diga o que bem entender, o que bem quiser, e o azar é todo nosso. Porque dissemos que tudo era relativo.
Quem diz o que quer e atribui o significado que deseja a qualquer coisa é Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho. Pior: Humpties Dumpties segurando a concha de O Senhor das Moscas. Para quem não sabe, no livro de Golding, os meninos que sobrevivem a um desastre aéreo e passam a habitar uma ilha instituem — ao menos enquanto sua pequena democracia resiste — que só pode falar aquele que tiver a concha nas mãos.
Pois é. Humpty Dumpty, no Brasil, segura a concha. De forma institucionalizada. 2 + 2 = 22, e ai de quem disser o contrário. Este país é incrível. Vamos ganhar o prêmio Ignóbil. Um deputado entrou com projeto, em 2018, para permitir que as pessoas andem armadas a bordo de aviões (aqui). Poxa. Se o mundo soubesse disso, já de há muito não haveria sequestros e atos terroristas. Si vis pacem parabellum. E eu vou estocar alimentos. Ou vou abrir uma loja de armas.
Vejam em que pé estamos no 2+2=22: já há quem diga — li isso na grande mídia (e não na deep internet) — que a proteção de direitos humanos é inimiga da polícia. Incrível ou crível? E um vereador de São Paulo afirma que a KKK — Ku Klux Klan — é de esquerda (ver aqui). A comunidade negra norte-americana deve ficar feliz com esse “achado histórico” do vereador paulista, por sinal, negro como os perseguidos — e mortos — pela KKK. Como a gente aprende coisas... Bom já sabíamos que os negros foram os culpados por sua escravidão (os portugueses, disse-se, “nem pisaram na África”), agora sabemos mais um capítulo da história oficial (além do fato de já termos admoestado — e humilhado — os alemães por estes não entenderem nada de nazismo!). O vereador paulista deve ter estudado isso na Bullshit University II, no livro How to Offend the US Black Community, da Extreme Right Press. Da mesma editora, o mais recente livro How to teach the art of white supremacy to KKK? And KKK is not laughing emoji. Taí a explicação: o “grande historiador contemporâneo” — nosso preclaro vereador paulista — achou que KKK era um emoji. Bingo. Meu Deus.
E competindo para o Prêmio Ignobil, um delegado de polícia do RS afirma, de pés-juntos, que a suástica é um símbolo hindu. Vai ver que também pensou que era um emoji. E, pior: nada disso é fake news. Creiam. Ah: a terra é redonda, sim. Não é plana.
Post scriptum: Arquétipo do brasileiro médio 1: 23h59 min — “Eu prefiro ser revistado a cada esquina do que ser assaltado”. Um minuto depois: “Galera, onde tem blitz?”. Bingo. Arquétipo do brasileiro 2: Fila de espera de bagagem no aeroporto internacional. O sujeito classe média critica veemente o Brasil. “Assim não dá. Esperando faz 20 minutos as malas. Só no Brasil, mesmo. Falta lei e ordem”, e outras sandices. E o sujeito ao lado, interlocutor do “indignado”: “Onde está sua esposa, a Clarinha”?”. E o “indignado”: “Clarinha está lá atrás, esperando as outras malas. Sabe como é, trouxemos muitas coisas de Maiame e vamos passar separados na alfândega; assim é mais difícil de nos pegarem”. Binguíssimo!
E 2+2 dá..., mesmo, 22! E, na livraria, um best seller: "Como assar melhor o bacon". O prefácio é da lavra de um porco gordinho.
Onde:
https://www.conjur.com.br/2018-out-18/senso-incomum-2222-kkk-esquerda-temas-galera-onde-blitz


sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Isto não é um poema! É um desabafo!

Arnaldo Antunes

FHC, Ciro e a “neutralidade” criminosa diante de Bolsonaro

Por Kiko Nogueira

Não há nada mais abjeto que a omissão.
FHC está embarcando para a Europa por estes dias, coerente com uma biografia crescentemente desprezível.
Ciro Gomes já se encontra em Paris.
As milícias bolsonaristas fizeram mais de cinquenta ataques nos últimos dias. Escolas estão sendo pichadas com suásticas.
Alvos são mulheres, nordestinos, gays, negros, “comunistas”.
Uma professora foi chamada de “preta” e “galinha”.
Ciro, que xingou Bolsonaro de “nazista filho da puta” num comício, agora escolhe o tinto que harmoniza melhor com o peru ao molho de foie gras.
Segundo um estafeta escreveu, num texto confuso e prolixo, a culpa é do PT, que não reconheceu que o pedetista “era o único em condições de vencer, com folga, o fascista e seus seguidores”.
Brizola estaria morrendo de vergonha com a mesquinharia.
Há um abismo civilizatório entre Haddad e seu oponente.
Os pregadores do voto nulo ou da abstenção sabem disso. O resto é conversa mole.
Neutralidade é um luxo ao qual qualquer democrata não pode se dar agora.
O isencionismo nesses tempos é um crime moral.
Existe apenas uma posição política que qualquer pessoa mentalmente sã pode tomar.
Ficar no muro é se alinhar com quem matou o mestre de capoeira Moa do Katendê e com quem se coloca como “representante de uma nova lei, que autoriza violência e justiça com as próprias mãos como um princípio de governo”, na definição do psicanalista e professor da USP Christian Dunker.
“Nós devemos tomar partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”, discursou Elie Wiesel, sobrevivente de campos de concentração (Auschwitz e Buchenwald), ao ganhar o Nobel da Paz.
“Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão ameaçadas, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades se tornam irrelevantes”.
Uma frente progressista pode morrer na praia por causa da pequenez de seus líderes.
Onde:

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/fhc-ciro-e-a-neutralidade-criminosa-diante-de-bolsonaro-por-kiko-nogueira/