domingo, 17 de julho de 2016

A guerra não tem rosto de mulher

Lyudmila Pavlichenko (atiradora russa, símbolo da defesa de Sebastopol, Criméia)

Foto: AP

..."Passados alguns anos, já anotei centenas de relatos... Nas prateleiras de livros tenho separado centenas de fitas cassete e milhares de páginas impressas. Escuto e leio com atenção...

Cada vez mais o mundo da guerra revela para mim um lado inesperado. Antes, eu não me fazia essas perguntas: como era possível, por exemplo, passar anos dormindo em trincheiras inacabadas, ou ao lado de uma fogueira na terra nua, usar botas e capote e, por fim, não rir, não dançar? Não usar vestidos de verão? Esquecer dos sapatos e das flores...e elas tinham dezoito, vinte anos! Estava acostumada a achar que não há lugar para a vida feminina na guerra. Ali ela é impossível, quase proibida. Mas eu estava enganada... Bem depressa, já na época dos primeiros encontros, notei: não importa de que as mulheres falassem, até mesmo de morte, sempre se lembravam (sim!) da beleza, que aparecia como uma parte indestrutível de sua existência: Ela estava tão bonita no caixão...Parecia uma noiva.(A. Strótseva, soldado de infantaria), ou: Iriam me entregar uma medalha, e minha 'guimnastiorka' estava velha. Costurei para mim uma pequena gola de gaze. Era branca de qualquer forma... Me achei tão bonita naquele momento. Não tínhamos espelho, eu não conseguia me ver. Bombardearam tudo o que tínhamos... (N. Iermakova, comunicações). Contavam alegremente e com gosto seus ingênuos truques de meninas, seus pequenos segredos, sinais invisíveis, como se, no cotidiano 'masculino' da guerra e nos assuntos 'masculinos' da guerra, quisessem ainda assim continuar sendo elas mesmas. Sem trair sua natureza. A memória delas surpreendentemente (já tinham se passado quarenta anos) guardava uma grande quantidade de coisas banais do cotidiano da guerra. Detalhes, nuances, cores e sons. No mundo delas, cotidiano e existência se uniam e o fluxo da existência era valioso em si mesmo, elas se lembravam da guerra como uma época da vida, e mais de uma vez observei como nas conversas delas o pequeno vencia o grande e até a história. Pena que só fui bonita na guerra... Queimei nela meus melhores anos. Passaram. Depois eu envelheci muito rápido... (Anna Galai, atiradora de fuzil).

Depois de muitos anos de distanciamento, alguns fatos de repente se ampliavam, outros diminuíam. Ampliava-se também o que era humano, íntimo, e isso passou a ser, para mim, o mais curioso: até para elas mesmas era o mais interessante e próximo. O humano vencia o desumano, simplesmente porque era humano. Não tenha medo de minhas lágrimas. Não fique com pena. Mesmo que me seja doloroso, sou grata a você por ter me lembrado de minha juventude... (K. S. Tikhonóvitch, sargento, operadora de artilharia antiaérea).

Eu tambem não conhecia essa guerra. Nem suspeitava de sua existência"...
   
A guerra não tem rosto de mulher - Svetlana Aleksiévitch (pg. 236-7)

Tradução: Cecília Rosas


Onde:

A guerra não tem rosto de mulher # Svetlana Alekssiévitch
Tradução: Cecília Rosas
Companhia das Letras

4 comentários:

  1. lindo texto, o livro deve ser otimo.

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  2. Sim. O livro é maravilhoso e a tradução está ótima.
    É a narrativa da II Guerra feita por mulheres que foram à luta. Elas relatam a experiência emocional, sensível, de pessoas comuns colocadas diante de situações extremas de cáos, horror, privações, barbárie e risco constante de morte.
    O principal não é a guerra da ação, do heroísmo, da luta por poder, território e vitória. Claro que isso tudo faz parte e está subjacente, mas as vozes femininas trazem à luz a dimensão humana concreta, simples, pequena, trivial, vivida por adolescentes e mulheres que foram arrastadas por um turbilhão de eventos trágicos, caóticos e grandiosos e como isso impactou suas almas, percepções, sensibilidades e sentimentos singulares e íntimos.
    São histórias de vulnerabilidade e força, sempre juntas.

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  3. Obrigada pela indicação, Cafu! Beijo.

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  4. A Companhia das Letras publicou um outro livro dela muito bom também. Chama-se "Vozes de Tchernóbil - a história oral do desastre nuclear".
    A estrutura é bem parecida: relatos de sobreviventes ou parentes de pessoas que sucumbiram na tragédia, entremeado por reflexões, informações e descrições da autora.
    Saudades, Helô! Beijos.

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