segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Remédios do amor - Melhorar o Objeto

Arte # Per Arnoldi



Novo amor (Eduardo Krieger) # Maria Rita


MELHORAR O OBJETO

É pois o quarto e último remédio do amor, e com o qual ninguém deixou de sarar, o melhorar de objeto. Dizem que um amor com outro se paga, e mais certo é que um amor com outro se apaga. Assim como dois contrários em grau intenso não podem estar juntos em um sujeito, assim no mesmo coração não podem caber dois amores, porque o amor que não é intenso não é amor. Ora, grande coisa deve de ser o amor, pois, sendo assim, que não bastam a encher um coração mil mundos, não cabem em um coração dois amores. Daqui vem que, se acaso se encontram e pleiteiam sobre o lugar, sempre fica a vitória pelo melhor objeto. É o amor entre os afetos como a luz entre as qualidades. Comumente se diz que o maior contrário da luz são as trevas, e não é assim. O maior contrário de uma luz é outra luz maior. As estrelas no meio das trevas luzem e resplandecem mais, mas em aparecendo o sol, que é luz maior, desaparecem as estrelas. Em aparecendo o maior e melhor objeto, logo se desamou o menor.

Pe. Antônio Vieira - Sermão do Mandato



Onde:
Samba meu # Maria Rita

http://pinsta.me/tag/perarnoldi

http://www.moma.org/collection/artist.php?artist_id=5

domingo, 7 de dezembro de 2014

Remédios de amor - Ingratidão

O coração dos homens # Fernando Aguiar


Cor'ingrato (Cardillo - Cordiferro) # Oscar Peixoto e Aurélio Mehler
(gravação de um recital)

Cor'ingrato  (Cardillo - Cordiferro) # Zizi Possi




INGRATIDÃO


Assim como os remédios mais eficazes são ordinariamente os mais violentos, assim a ingratidão é o remédio mais sensitivo do amor, e juntamente o mais efetivo. A virtude que lhe dá tamanha eficácia, se eu bem o considero, é ter este remédio da sua parte a razão. Diminuir o amor o tempo, esfriar o amor a ausência, é sem-razão de que todos se queixam; mas que a ingratidão mude o amor e o converta em aborrecimento, a mesma razão o aprova, o persuade, e parece que o manda. Que sentença mais justa que privar do amor a um ingrato? O tempo é natureza, a ausência pode ser força, a ingratidão sempre é delito. Se ponderarmos os efeitos de cada um destes contrários, acharemos que a ingratidão é o mais forte. O tempo tira ao amor a novidade, a ausência tira-lhe a comunicação, a ingratidão tira-lhe o motivo. De sorte que o amigo, por ser antigo, ou por estar ausente, não perde o merecimento de ser amado; se o deixamos de amar não é culpa sua, é injustiça nossa; porém, se foi ingrato, não só ficou indigno do mais tíbio amor, mas merecedor de todo o ódio. Finalmente o tempo e a ausência combatem o amor pela memória, a ingratidão pelo entendimento e pela vontade. E ferido o amor no cérebro, e ferido no coração, como pode viver? O exemplo que temos para justificar esta razão ainda é maior que os passados.

Pe. Antônio Vieira - Sermão do Mandato



Onde:
Passione # Zizi Possi

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do

http://www.poemavisual.com.br/html/show_poeta.php?id=43

sábado, 6 de dezembro de 2014

Remédios do amor - Ausência

M-Maybe # Roy Lichtenstein


Desencontro (Chico Buarque de Holanda) # Rosa Passos



AUSÊNCIA

Muitas enfermidades se curam só com a mudança do ar; o amor com a da terra. E o amor como a lua que, em havendo terra em meio, dai-o por eclipsado. E que terra há que não seja a terra do esquecimento, se vos passastes a outra terra? Se os mortos são tão esquecidos, havendo tão pouca terra entre eles e os vivos, que podem esperar, e que se pode esperar dos ausentes? Se quatro palmos de terra causam tais efeitos, tantas léguas que farão? Em os longes, passando de tiro de seta, não chegam lá as forças do amor. Os filósofos definiram a morte pela ausência: Mors est absentia animae a corpore. Despediram-se com grandes demonstrações de afeto os que muito se amavam, apartaram-se enfim, e, se tomardes logo o pulso ao mais enternecido, achareis que palpitam no coração as saudades, que rebentam nos olhos as lágrimas, e que saem da boca alguns suspiros, que são as últimas respirações do amor. Mas, se tomardes depois destes ofícios de corpo presente, que achareis? Os olhos enxutos, a boca muda, o coração sossegado: tudo esquecimento, tudo frieza. Fez a ausência seu ofício, como a morte: apartou, e depois de apartar, esfriou.

Pe. Antônio Vieira - Fragmento do Sermão do Mandato.




Onde:
Eu e meu coração # Rosa Passos

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do

http://www.wikiart.org/en/roy-lichtenstein/m-maybe-1965

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Remédios do amor - Tempo (III)

Mar do tempo # Kyle Bean



Gotas de tempo puro (Paulinho Moska) # Ney Matogrosso



O Tempo

Pinta-se o amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacob, nunca chega à idade do uso da razão. Usar de razão, e amar, são duas coisas que não se ajuntam. A alma de um menino, que vem a ser? Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar. Tudo conquista o amor, quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor.

Pe. Antônio Vieira


Fragmento do Sermão do Mandato, 1643


Edições Sermões – Semana Santa 1995 - Gráfica Ouro Preto - Prefeitura Ouro Preto



Onde:

Olhos de farol # Ney Matogrosso

http://www.kylebean.co.uk/

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Remédios do amor - Tempo (II)

A persistência da memória # Salvador Dali



Resposta ao tempo (Aldir Blanc - Cristóvão Bastos) # Nana Caymmi



O Tempo


De todos os instrumentos com que o armou a natureza, o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não tira; embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os olhos, com que vê o que não via; e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença, é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor? O mesmo amar é causa de não amar, e o ter amado muito, de amar menos.

Pe Antônio Vieira - Fragmento do Sermão do Mandato, 1643

Edições Sermões – Semana Santa 1995 - Gráfica Ouro Preto - Prefeitura Ouro Preto





Onde:

Resposta do tempo # Nana Caymmi

http://www.wikiart.org/en/salvador-dali/the-persistence-of-memory-1931

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Remédios do amor - Tempo (I)

Livro do Tempo # Lygia Pape




Tempo Rei (Gilberto Gil) # Gilberto Gil



Remédios do amor

Diz que é de amor, e de amor nosso, e de amor incurável: cum dilexisset; de amor nosso: suos qui erant in mundo; e de amor incurável, e sem remédio: in finem dilexit eos.



O TEMPO


O primeiro remédio que dizíamos, é o tempo. Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera! São afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas, que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os Antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho.



Pe. Antônio Vieira


Fragmento do Sermão do Mandato, 1643

Edições Sermões – Semana Santa 1995 - Gráfica Ouro Preto - Prefeitura Ouro Preto




Onde:


Unplugged # Gilberto Gil

http://www.wikiart.org/pt/lygia-pape/book-of-time-1961


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Sensibilidade inteligente

Retrato de Clarice # Carlos Scliar




Carinhoso(Pixinguinha - João de Barro) # Tom Jobim





SENSIBILIDADE INTELIGENTE

Pessoas que às vezes querem me elogiar chamam-me de inteligente. E ficam surpreendidas quando digo que ser inteligente não é meu ponto forte e que sou tão inteligente quanto qualquer pessoa. Pensam, então, inclusive que estou sendo modesta.
É claro que tenho alguma inteligência: meus estudos o provaram, e várias situações das quais se sai por meio da inteligência também provaram. Além de que posso, como muitos, ler e entender alguns textos considerados difíceis.
Mas muitas vezes a minha chamada inteligência é tão pouca como se eu tivesse a mente cega. As pessoas que falam de minha inteligência estão na verdade confundindo inteligência com o que chamarei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, várias vezes tive e tenho.
E, apesar de admirar a inteligência pura, acho mais importante, para viver e entender os outros, essa sensibilidade inteligente. Inteligentes são quase a maioria das pessoas que conheço. E sensíveis também, capazes de sentir e de comover. O que, suponho, eu uso quando escrevo, e nas minhas relações com amigos, é esse tipo de sensibilidade. Uso-a mesmo em ligeiros contatos com pessoas, cuja atmosfera tantas vezes capto imediatamente.
Suponho que este tipo de sensibilidade, uma que não só se comove como por assim dizer pensa sem ser com a cabeça, suponho que seja um dom. E, como dom, pode ser abafado pela falta de uso ou aperfeiçoar-se com o uso. Tenho uma amiga, por exemplo, que, além de inteligente, tem o dom da sensibilidade inteligente, e, por profissão, usa constantemente esse dom. O resultado então é o que eu chamaria decoração inteligente em tão alto grau que a guia e guia os outros como um verdadeiro radar.


Clarice Lispector



Onde:

Aprendendo a viver # Clarice Lispector
Ed. Rocco

Agô! Pixinguinha - 100 anos
Vários artistas

http://topicos.estadao.com.br/fotos-sobre-clarice-lispector/retrato-de-clarice-feito-pelo-pintor-carlos-scliar-foto-faz-parte-do-livro-clarice-fotobiografia,769495F4-1EEF-43E4-8A7F-7A81EA5B2614