terça-feira, 1 de setembro de 2015

Utopia, Distopia

Utopia (Luminária de mesa) # Nanda Vigo



Do espaço ao tempo

Marcelo Jasmin


A utopia nasceu como um não-lugar, como um espelho às avessas de um mundo que se queria observar e criticar. A sua primeira versão se encontra na obra do humanista inglês Thomas Morus, que viveu entre 1477 e 1535, cavaleiro e personagem importante na corte de Henrique VIII. O seu livro, De Optimo Reipublicae Status deque Nova Insula Utopia Libellus Vere Aureus, foi escrito entre 1515 e 1516 e publicado em latim, na cidade de Louvain, em dezembro de 1516. O termo que deu título ao livro era um neologismo inventado por Morus. Derivava da combinação do prefixo grego ou, que indica negação, e o substantivo topos, lugar. O sufixo ia provavelmente foi adotado para dar proximidade a nomes de lugares conhecidos, como Itália, Britânia, Germânia, Alexandria, Macedônia, etc. Utopia é, então, em seu primeiro sentido etimológico, um não-lugar, embora apareça nesta obra seminal como o nome de uma ilha.

Interessante notar a escolha de Morus, pois não quis nos apresentar uma eutopia que ao reunir o prefixo grego eu, que quer denotar bom, ao topos, indica o lugar do bem. Aqui podemos identificar uma diferença da utopia original em relação a outras versões de mundos imaginados. Um bom exemplo é o da terra da Cocanha, uma tradição de múltiplas versões que convergem para a imaginação de um lugar da abundância e da satisfação dos mais diversos apetites, terra sem trabalho e sem sofrimento, onde tudo é gratuito e dado, onde os conflitos são eliminados pela “satisfação privada dos apetites dos homens” (Davis). Também na Arcádia, ficção em perspectiva pastoril, encontramos os temas da abundância e da satisfação dos desejos, mas através da moderação e da simplificação dos desejos humanos que se harmonizam, assim, com a generosidade da natureza, integrando homem e meio ambiente. A utopia de Morus não é nada disso. Ela é uma cidade, e expressa “a ascendência do homem sobre a natureza, a dominação do ambiente pelos padrões mentais abstratos e conceituais” (Frye). É também uma crítica da sociedade pelo escritor que aponta a irracionalidade ou o equívoco dos comportamentos sociais observados, diferentemente dos ideais da terra da Cocanha que, se sugerem um desejo de libertação daquilo que oprime, não se elaboram a partir de uma análise da sociedade contemporânea ao escritor, preferindo afirmar a fantasia paradisíaca da plena satisfação.

Mas de lá para cá a utopia ganhou muitos outros significados e versões, impedindo com que possamos delimitar cabalmente os seus limites. Ela se confunde com a idade de ouro, com o irrealizável, com a quimera, com a ficção científica, com o que devemos esperar adiante, com o que é necessário para continuarmos suportando o mundo em que vivemos, só para falarmos de alguns contextos comparativos em que a literatura contemporânea a apreende. Nos séculos XVIII e XIX, a utopia, como tudo o mais, se temporalizou, sendo lançada ao tempo futuro como aquilo a que podemos aceder pela via da ação e do desenvolvimento da razão. Ao final do século XIX europeu, a crença num progresso cientificamente ordenado lançou a utopia ao reino de uma ficção rebaixada. Friedrich Engels, por exemplo, comparou, em 1877, o socialismo de Fourier, Owen e Saint-Simon, que chamou de “utópico”, com aquele professado por Marx e por ele mesmo, um “científico”, para dizer do caráter ao mesmo tempo ingênuo e irrealizável das ideias daqueles primeiros. Neste contexto, as ideias dos utópicos foram identificadas como imaginações arbitrárias na medida em que não se adequavam ao tempo em que se vivia, o tempo do capitalismo, apreendido cientificamente no desenvolvimento das forças produtivas inovadoras e revolucionárias que haviam conquistado o planeta. A crítica produtiva do não-lugar deveria ser substituída por bases realistas (científicas) que apontassem para a ultrapassagem da sociedade capitalista e a construção do comunismo visto como um futuro desejável e exequível, pois fundado nas estruturas dinâmicas do mundo moderno. Desde então, e especialmente após 1989, muitos passaram a enxergar aquela cientificidade professada por Engels como uma ilusão desejante a ser arrolada na coleção das utopias generosas e inexequíveis da humanidade.

Vivemos, hoje, um momento especialmente distópico, quando a descrença em relação a modelos redentores se associa ao aumento da violência cotidiana e à crescente dependência dos seres humanos à tecnologia e de sua incrível parafernália. O horizonte contemporâneo parece carregado de incerteza e a sensação de impotência se mistura à ausência de uma direção definida para a história humana. No entanto, sabemos que grande parte daquilo que pareceu natural, necessário e inevitável a homens e mulheres de outras épocas mostrou-se contingente e sujeito à mudança ou ao desaparecimento. Ao mesmo tempo, o que pareceu estapafúrdio num tempo qualquer, pode vir a tornar-se senso comum, como uma república num grande território ou uma democracia de milhões de eleitores. Pensando nisso, talvez encontremos um lugar para revitalizar a potência utópica na sua tarefa de alimentar a imaginação e a esperança, e de abrir as brechas no mundo dos grandes mecanismos globais para que pensamento e ação possam significar outra coisa que tolice ou ingenuidade inócuas. O possível não pode prescindir da coragem da invenção, do ficcional, da imaginação. Talvez a utopia não seja hoje nem não-lugar, nem futuro realizável, mas uma instância permanente de crítica e imaginação que nos livra da naturalização do que há aí e agora.


Onde:

http://www.mutacoes.com.br/sinopses/do-espaco-ao-tempo/

http://www.wikiart.org/en/nanda-vigo/utopia-table-lamp-1970

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