sexta-feira, 22 de maio de 2015

A filósofa e o arquiteto

Desenho de Oscar Niemeyer

Sônia Viegas revela o sonho de sua casa


Caro Humberto,

Como dar forma espacial a um sonho quando não se é, como você, um poeta do espaço? Vou esboçar um universo fragmentado de qualidade e de desejos, no esperança de que você o imprima e unifique na pedra, na terra, na distância precisa entre uma janela e uma porta, uma parede e uma escada, um patamar e um vão que se ergue das sombras, a recortar, de dentro, o céu.
No esforço para revelar uma casa imaginária, percebo que meu sonho não possui ao menos um contorno definido. Eis o que acontece aos sonhos habitados. Não se lhes percebe a forma, pois apresentam a mutabilidade de nossos estados de espírito.
De imediato a casa se me afigura apenas como um forte (e talvez excessivamente romântico) desejo de paisagem. Existem habitações que dão para lindas vistas, mas minha exigência de paisagem não se resolveria dessa forma, pois demanda a integração entre a intimidade da casa e o ambiente exterior; conluio do dentro e do fora, à mercê do vento, da luz, da sombra e do som.
A paisagem seria, então, através do pórtico mineral por você arquitetado, a solene vista da mata e das montanhas (onde imagino e desejo o percurso inteiro do sol), mas, também:

° O ângulo de uma fresta de luz morrendo no crepúsculo, à soleira de uma porta;

° A sombra de uma casuarina através da janela;

° O vermelho da terra contra a força do muro, semi-coberto (já) de alguma hera;

° O movimento da lua através de seus ciclos, pressentido ou devassado durante alguma vigília, no jardim.

Se tento, agora, imaginar os espaços interiores desta casa que me habita em sonho, vejo:

° Uma ampla cozinha, que recebe de cheio as inflexões do dia e da noite. Nessa cozinha-concha receberei amigos e netos, passarei momentos raros, saturados de vinho e de vigília, acessível aos rumores da noite, protegidos pela nudez das paredes, pelo brilho do fogo, na crepitação da lenha.

° Quartos quentes, iluminados pelo sol, com pequenas varandas dando para o recorte interno do céu. Num deles repetirei o apelo de Garcia Lorca:
“Quando eu morrer, deixai a janela aberta”.

° Uma sala feita de patamares interrompidos pelo verde, pela pedra, pelo musgo; com sua mágica abertura para o céu, entrecortada de sombras e reflexos.

Uma casa, como você pode ver, já incorporada na primeira forma que você lhe deu.
Um abraço afetuoso,


Sônia Viegas.


Carta de intenções da filósofa Sônia Viegas ao arquiteto Humberto Serpa.

Publicada em algum jornal de Minas em 22 de Dezembro de 1990, algum tempo depois da morte da inesquecível mestra mineira.

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