País do futebol (Milton Nascimento - Fernando Brant)# Ellen Oléria e Carlinhos Brown
Tristíssimo Brasil
Nelson Rodrigues
"que espécie de prazer, que miserável volúpia, que satisfação demoníaca e suicida leva o brasileiro a cuspir na própria imagem como um Narciso às avessas? Por quê, meu Deus, por quê?"
"que espécie de prazer, que miserável volúpia, que satisfação demoníaca e suicida leva o brasileiro a cuspir na própria imagem como um Narciso às avessas? Por quê, meu Deus, por quê?"
Amigos, o sujeito que nunca viu a nossa resenha dominical,
na TV-4, não sabe o que é o Brasil, nem imagina o que seja o brasileiro. Os
nossos debates e conclusões são um dado fundamental para sociólogos,
historiadores e políticos. Direi mesmo que se a mesa Facit (1) existisse no
tempo de Euclides da Cunha, este a teria preferido a Canudos. Repito: — a nossa
resenha ensina mais sobre o país do que os sertões, no princípio do século.
Ainda domingo, houve uma que devia figurar, imediatamente,
na Bienal. Imaginem vocês que sustentamos, há muito tempo, a seguinte tese: — o
europeu é viril, mas leal; ao passo que o brasileiro é bruto e desleal. Vejam
vocês que bela imagem fazemos de nós mesmos. Pois bem. E, domingo, um dos
nossos convidados pôs nas nuvens o futebol europeu, a educação europeia, a
polidez europeia, a correção europeia.
E, então, aconteceu o seguinte: — resolvi fazer a defesa do
Brasil e do brasileiro. Mas não imaginei, Deus me livre, que estava cutucando,
com a vara de cutucar, a ira da quase totalidade dos companheiros. E, de fato,
é muito difícil elogiar o Brasil no Brasil, é muito difícil elogiar o
brasileiro entre brasileiros.
Vencendo a minha timidez de subdesenvolvido, comecei a dizer
o seguinte: — o craque brasileiro é muito mais doce, mais educado, mais
cavalheiresco do que o europeu. E argumentei com o nosso comportamento exemplar
nos três últimos Campeonatos Mundiais. Nas três oportunidades, o brasileiro foi
inexcedível na sua conduta disciplinar. Ninguém se lembra de um foul desleal
dos nossos. Em 58, contra a França, fomos garfados da maneira mais deslavada.
Tivemos que fazer três gols para que um valesse.
O escrete patrício não se revoltou. Aceitamos tudo. A nossa
paciência era humildade. Eu estava vendo a hora em que ia aparecer em cada
ombro do escrete um passarinho. Em 62, a mesma coisa. O escrete evoluía em
campo como um marquês de rancho, com peruca, sapatos de fivela e um manto azul
com estrelas bordadas. Era pungente ver a doçura do nosso futebol, doçura que
só o subdesenvolvimento explica. Note-se que, tanto em 58 como em 62, os nossos
adversários andaram se comendo. O documentário alemão, de 58, apresenta cenas de
uma selvajaria horripilante.
Fiz o elogio do Brasil e do brasileiro. Esperei que, na pior
das hipóteses, os presentes implicassem em tão veemente apologia. Esperei que,
no dia seguinte, saísse nos jornais, como na Assembleia Legislativa: “O orador
foi muito cumprimentado.” Pelo contrário: — quase me comeram vivo. Lembro-me
que um dos companheiros, com uma mordacidade crudelíssima, lembrou: — “Em 58, o
Brasil deu um olé!”
Fiz um silêncio estarrecido. Primeiro, porque não me
lembrava de nenhum olé. Segundo, porque nunca me constou que o olé fosse uma
demonstração de bestialidade. Mas o colega insistia, de olho rútilo e lábio
trêmulo: — déramos um olé na final de Suécia x Brasil. Confesso que não tive
palavras. Sem entender mais nada, perguntava de mim para mim: — que espécie de
prazer, que miserável volúpia, que satisfação demoníaca e suicida leva o
brasileiro a cuspir na própria imagem como um Narciso às avessas? Por quê, meu
Deus, por quê?
Volto ao que dizia no início desta crônica: — no Brasil, o
sujeito não será um estadista completo se não acompanhar, domingo após domingo,
a nossa resenha. Em cada parte, em cada piada, em cada opinião, o que se sente
é o Brasil, esse ilustre e desventurado Brasil, tão pouco amado pelos
brasileiros.
Jornal dos Sports, 18/10/1967
(1) Grande resenha Facit foi uma famosa mesa-redonda da TV
Globo; era formada por Nelson Rodrigues, Armando Nogueira, João Saldanha e
outros grandes nomes. O programa discutia, principalmente, o desempenho dos
times cariocas.
Espelho # Roy Lichtenstein
Onde:
A pátria de chuteiras# Nelson Rodrigues
Ed. Nova Fronteira
ou:
http://www.copa2014.gov.br/pt-br/noticia/cronicas-de-nelson-rodrigues-tristissimo-brasil
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