Alessandro Gottardo (Shout)
INUTENSÍLIO
Paulo Leminski
A ditadura da utilidade
A burguesia criou um universo em que todo gesto tem que ser
útil. Tudo tem que ter um para quê, desde que os mercadores, com a Revolução
Mercantil, Francesa e Industrial, substituíram no poder aquela nobreza
cultivadora de inúteis heráldicas, pompas não rentáveis e ostentosas cerimônias
intransitivas. Parecia coisa de índio. Ou de negro. O pragmatismo de
empresários, vendedores e compradores, mete preço em cima de tudo. Porque tudo
tem que dar lucro. Há trezentos anos pelo menos, a ditadura da utilidade é unha
e carne com o lucrocentrismo de toda essa nossa civilização. E o princípio da
utilidade corrompe todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria
vida tem que dar lucro. Vida é o dom dos deuses, para ser saboreada
intensamente até que a Bomba de Neutrons ou o vazamento da usina nuclear nos
separe deste pedaço de carne pulsante, único bem de que temos certeza.
Além da utilidade
O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A
embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. A possessão diabólica. A
plenitude da carne. O orgasmo. Estas coisas não precisam de justificação nem de
justificativa.
Todos sabemos que elas são a própria finalidade da vida. As
únicas coisas grandes e boas que, pode nos dar esta passagem pela crosta deste
terceiro planeta depois do Sol (alguém conhece coisa além? Cartas à redação).
Fazemos coisas úteis para ter acesso a estes bens absolutos e finais.. A luta
dos trabalhadores por melhores condições de vida é, no fundo, luta pelo acesso
a esses bens, brilhando além dos horizontes estreitos do útil, do prático e do
lucro.
Coisas inúteis (ou in-úteis) são a própria finalidade da
vida.
Vivemos num mundo contra a vida. A verdadeira vida, que é
feita de júbilo, liberdade e fulgor animal.
Cem mil anos-luz além da utilidade, que a mística imigrante
do trabalho cultiva em nós, flores perversas no jardim do diabo, nome que damos
a todas as forças que nos afastam da nossa felicidade, enquanto eu ou enquanto
tribo.
A poesia é o princípio do prazer no uso da linguagem. E os
poderes deste mundo não suportam o prazer. A sociedade industrial centrada no
trabalho servo-mecânico, dos EUA à URSS, compra por salário o potencial erótico
das pessoas, em troca de performances produtivas, numericamente calculáveis.
A função da poesia é a função do prazer na vida humana.
Quem quer que a poesia sirva para alguma coisa não ama a
poesia. Ama outra coisa. Afinal a arte só tem alcance prático em suas
manifestações inferiores, na diluição da informação original. Os que exigem
conteúdo querem que a poesia produza um lucro ideológico.
O lucro da poesia quando verdadeira é o surgimento de novos
objetos no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de produzir
mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da utilidade.
Existe uma política na poesia que não se confunde com a
política que vai na cabeça dos políticos. Uma política mais complexa, mais
rarefeita, uma luz política ultravioleta ou infravermelha. Uma política
profunda, que é crítica da própria política, enquanto modo limitado de ver a
própria vida.
O indispensável in-útil
As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte
sirva para alguma coisa. Servir. Prestar. O serviço militar. Dar lucro. Não
enxergam que a arte (a poesia é arte) é a única chance que o homem tem de
vivenciar a experiência da liberdade, além da necessidade. As utopias, afinal
de contas, são, sobretudo, obras de arte. E obras de arte são rebeldias.
A rebeldia é um bem absoluto. Sua manifestação na linguagem
chamamos poesia, inestimável inutensílio.
As várias prosas do cotidiano e do(s) sistema(s) tentam
domar a megera.
Mas ela sempre volta a incomodar.
Com o radical incômodo de uma coisa in-útil num mundo onde
tudo tem que dar lucro e ter um por quê.
Pra que por quê?
Macanudo - Liniers
Onde:
Ensaios e Anseios crípticos # Paulo Leminski - Editora Unicamp
Imagens:
http://www.alessandrogottardo.com/Pages/works.aspx
http://theredlist.com/wiki-2-343-918-225-390-view-poetic-1-profile-shout.html
http://www.macanudo.com.ar/
http://www.macanudo.com.ar/
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