Chema Madoz
VISITAS AO LUGAR-COMUM
Ana Martins Marques
1
Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhes o corte
o brilho
cego
2
Pagar para ver
e receber
em troca
vistas parciais
uns cobres
de passagem
3
Dobrar a língua
e ao desdobrá-la
deixar cair
uma a uma
palavras
não ditas
4
Perder a hora
e encontrá-la depois
num intervalo
de teatro
nos cantos empoeirados
do domingo
entre um telefone e outro
dentro do táxi
5
Dar à luz
e então sondar
num átimo
de abismo
- como um espeleólogo
um cenógrafo
um guarda-noturno -
a própria escuridão
6
Perder a cabeça
e então buscá-la
nos últimos lugares
onde esteve
dentro da touca
de banho
sobre o travesseiro
entre os joelhos
entre as mãos
na casa demolida
da infância
sobre as coxas
mornas
ainda
7
Tirar fotografias
e depois devolvê-las
àqueles de quem as tiramos
à mulher fora de foco
em seu vestido violeta
à casa de janelas verdes
às paisagens
tomadas emprestadas
à casca
de cada coisa
aos vários ângulos da Torre Eiffel
ao cachorro morto
na praia
8
Cortar relações
e depois voltar-se
verificar se o que restou
suporta
remendo
demorar-se
sobre a cicatriz
do corte
9
Esperar horas a fio
e então desvencilhar-se
das coisas tecidas na espera
dos ponteiros do relógio
cada um mais lento que o outro
dos pelo menos dez cigarros
das poltronas de mogno
uma delas
vazia
10
Amar
profundamente
mas testar
volta e meia
se ainda
dá pé
11
Correr riscos
e ao fim
arfante
da corrida
voltar-se
para avaliar
o traçado
12
Chegar em cima da hora
e espiar
de relance
como quem levanta o tapete
em casa alheia
o que ficou
por baixo
13
Esperar junto àqueles
que caíram em si
que caíram na risada
que caíram no ridículo
que caíram do cavalo
que caíram das nuvens
que a noite
caia
14
Quebrar promessas
e ao recolher os cacos
dicerni-los
entre aqueles
do silêncio
quebrado
Onde:
O livro das semelhanças # Ana Martins Marques
Companhia das Letras
http://www.chemamadoz.com/
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