quinta-feira, 18 de junho de 2015

O ocaso da família

Mafalda # Quino





O OCASO DA FAMÍLIA

Jurandir Freire Costa

Christopher Lasch é um historiador americano, autor de A Cultura do Narcisismo e de O Mínimo Eu, ambos já editados no Brasil. Refúgio Num Mundo Sem Coração, que data de 1977, é anterior a esses dois livros. Nele o autor analisa o declínio da autoridade familiar, tema que será retomado nos estudos posteriores. Para Lasch, vivemos na era de decadência da autoridade e dos ideais. A degradação da autoridade familiar é, ao mesmo tempo, efeito e instrumento deste ethos. A racionalização e a burocratização da sociedade, no capitalismo moderno, procuram continuamente converter os indivíduos em consumidores e, para tanto, promoveram a “socialização da reprodução” ou “proletarização da paternidade”. Isto é, assim como no capitalismo dos primórdios os produtores foram expropriados do saber sobre a fabricação dos produtos, os pais de hoje estão sendo expropriados da competência para educar os filhos, em favor do saber dos técnicos em relações humanas e saúde mental
Mas, pode-se perguntar, por que a família? Porque, responde Lash, a família é um dos últimos guardiões do passado. Na socialização tradicional, cujo centro era a família, a educação da infância centrava-se no respeito à autoridade paterna e aos ideais do bem comum. As crianças desde cedo aprendiam a desejar tudo aquilo que o adulto deveria cultivar como virtudes, ou seja, compromisso com o trabalho, austeridade nos costumes, preocupação com as futuras gerações e sentido de obediência às leis válidas para todos.
Diante da dureza e da frieza do mundo do trabalho e do capital, a família servia de abrigo para o mundo dos valores, de refúgio num mundo sem compaixão. Em seu interior, tradição e autoridade impunham-se por si mesmas, embora à custa dos inevitáveis conflitos e culpas vindos da relação do indivíduo com o superego paterno, representante destes ideais. Ora esta família e este indivíduo tornaram-se obsoletos diante da moral do consumo, alavanca do capitalismo atual. Por isso, a família começou a ser acusada de produzir adultos neuróticos, que assim se tornavam porque foram, na infância, educados não pelo que eram mas conforme o que deveriam ser.
Acontece, diz Lasch, que este pretenso respeito à espontaneidade infantil nada mais é que a inculcação dos hábitos que formam o perfil psicológico do futuro consumidor. A criança, na sociedade permissiva, aprende a ver toda autoridade, toda tradição e toda renúncia à satisfação imediata dos desejos como sinal de autoritarismo e repressão. Resultado: em vez de personalidades neuróticas, criam-se personalidades narcísicas; em vez de conflitos e culpas frente à autoridade, ansiedade e insatisfação crônicas, motores da voracidade consumista. Esta é a lei do mercado, posta no lugar da lei de Deus ou da lei da Pólis. Hipnotizada pelo consumo, a “massa” de sujeitos só se deixa mobilizar pelo que reverte de imediato em bem-estar físico, mental ou sexual, fazendo da “sensibilidade terapêutica” substituto da sensibilidade.
Criticando a cultura terapêutica e consumista, Lash leva de roldão toda a chamada contracultura americana dos anos 60-70, incluindo aí o movimento feminista, o movimento gay, o culto à droga, os modos de vida alternativos etc. A seu ver, todos tinham em comum o mesmo ataque ideológico à família, o mesmo desprezo pela esfera pública e a mesma apatia silenciosa diante das grandes questões cívicas, como a luta contra as desigualdades econômicas e as injustiças sociais.
As teses de Lasch, quando publicadas nos Estados Unidos, causaram um grande frisson. A direita aplaudiu seu apelo à ordem, mas não sabia o que o “inocente” mercado tinha a ver com tudo aquilo; a esquerda tachou-o de marxista tipo “capa-preta”, moralista e conservador. À distância, de fato, vê-se que Lasch tropeça aqui e ali, pela pressa em generalizar fatos sociais circunscritos e pela desenvoltura com que combinou história com psicanálise. Entre nós, por exemplo, Otávio de Souza mostrou como a idéia da cultura narcísica, em Lash, enfraquece e dilui a noção de narcisismo em Freud.
Mas essas pequenas e médias transgressões teóricas, que aliás fazem parte do “gênero intelectual” na tradição americana, não lhe retiram o mérito de ter trazido à tona a importantíssima questão da crise de autoridade e do descrédito dos ideais no Ocidente.
Ao que entendo, a fragilidade de Lasch não está no fato de recorrer à autoridade e à tradição para denunciar a falácia da liberdade narcísica de consumir; está em achar que pode fundar decisões ou preferências éticas com base em critérios racionais, universais e apriorísticos. Explico melhor. Lash quando critica a cultura narcísica da sobrevivência, apóia-se, sem dúvida alguma, na tradição democrática e individualista que é a sua. Mas, ou por medo de ser visto como muito liberal e pouco socialista; ou para não ser olhado com desdém pela academia, ou, enfim, por não poder aceitar totalmente a contingência histórica dos ideais morais, como Freud, “esquece” a fonte de seus princípios e fala da história como se estivesse fora dela. Aluga o inconsciente freudiano e a versão que dá da luta de classes marxista para, de lá, dizer o que não ia bem no passado e o que vai mal no presente.
Não dá outra. Na hora de propor o que deve ser, Lasch emudece ou vê-se obrigado a dizer, nas entrelinhas, algo mais ou menos assim: no mundo de Elia Kazan as coisas eram ruins, mas no de David Lynch são muito piores; o jeito então é voltar ao calvinismo de Vidas Amargas e Clamor do Sexo. O caso da auto-realização mostra bem este equivoco.
Lasch vê na idéia de auto-realização mais um sintoma da obsessão narcísica pelo próprio umbigo. Mas, pergunto, em que e por que a preocupação com o bem-estar físico ou mental faria Marx perder o sono ou Freud reescrever sua teoria dos sonhos? Por que querer viver melhor, seja lutando contra o preconceito sexual seja praticando ioga, psicanálise, alimentação natural ou meditação zen significa ipso facto ajudar a demolir a autoridade paterna ou ficar surdo diante das injustiças sociais?
Lasch joga a água suja com o bebê dentro. Uma coisa, diria, é a lei do mercado que, por exemplo, faz-nos engolir docemente a idéia de que direito do comprador é sinônimo de Código do Consumidor, como se o ato de comprar resumisse a “essência” do indivíduo; outra coisa é desqualificar os esforços feitos pelos indivíduos para viverem melhor, em nome de uma abstração subjetiva conceitual que ninguém sabe e ninguém viu. Se, em vez de falar do Olimpo, Lasch dissesse que, em nome da tradição democrática ocidental que é a sua e de milhões de outros sujeitos, é moralmente odioso querer reduzir família ao conjunto de bípedes aparvalhados que assistem juntos à televisão; adulto a zumbi de shopping centers; pai a suplente de caixa registradora; mãe a “orelhão” para desaforo e grosseria de adolescente; criança a cabide de artigos de moda etc, e tudo isso para multiplicar lucros, pois bem, assumindo explicitamente esta tradição, talvez Lasch pudesse conciliar o velho e o novo, sem prejuízo das virtudes públicas e sem parecer vestal da ética protestante e do espírito do capitalismo. Esta foi uma hesitação infeliz num livro de rara coragem intelectual e de imensa relevância para nossos tempos.




Onde:

A Ética e o Espelho da Cultura - Jurandir Freire Costa 
Ed. Rocco

http://clubedamafalda.blogspot.com.br/

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