sexta-feira, 18 de julho de 2014

Bashô o santo





Luas e sóis (meses e dias) são viajantes da eternidade. Os anos que vêm e se vão são viajantes também. Os que passam a vida a bordo de navios ou envelhecem montados a cavalo estão sempre em viagem, e seu lar se encontra ali onde suas viagens os levam. Os homens de antigamente, muitos, morreram pelos caminhos, e a mim também, durante os últimos anos, a visão de uma nuvem solitária levada pelo vento me inspirou contínuas ideias de meter o pé na estrada.
O ano passado dediquei a vagar pela costa. No outono voltei a minha cabana às margens do rio e a limpei de teias de aranha. Aí, me surpreendeu o fim do ano. Quando veio a primavera e houve neblina no ar, pensei em ir a Ôku, atravessando a barreira de Shirakawa. Tudo o que via me convidava a viajar, e estava tão possuído pelos deuses que não podia dominar meus pensamentos. Os espíritos do caminho me faziam sinais, e descobri que não podia continuar trabalhando.
Remendei minhas calças rasgadas e troquei as tiras do meu chapéu de palha. A fim de fortalecer as pernas para a viagem, me untei de moka queimada. Logo a ideia da lua na ilha de Matsushima começou a apoderar-se de meus pensamentos. Quando vendi minha cabana e me mudei para o sítio de Sampu para esperar ali o dia da partida, pendurei este poema numa viga da minha choça:

a cabana de ervas secas
o mundo tudo muda )
vira casa de bonecas

Quando, em 27 de março, me pus a caminho, havia neblina no céu da madrugada. A pálida lua matutina tinha perdido o brilho, mas inda se podia vislumbrar debilmente o monte Fuji. Em Ueno e em Yanaka, os ramos das cerejeiras em flor me despertaram pensamentos tristes ao perguntar-me se algum dia os voltaria a ver.Meus amigos mais queridos tinham todos vindo à noite à casa de Sampu, para poder me acompanhar durante o curto trecho de viagem que eu faria em barco. Quando desembarcamos num lugar chamado Senju, a ideia de começar uma viagem tão longa me encheu de tristeza. De pé sobre o caminho que talvez ia nos separar para sempre nesta vida que é como um sonho, chorei lágrimas de despedida:

 primavera
                       não nos deixe
       pássaros choram
lágrimas
                         no olho do peixe




Parte inicial de Sendas de Ôku, o mais célebre dos relatos de viagem de Matsuó Bashô, traduzido por Paulo Leminski.





Onde:

Matsuó Bashô # Paulo Leminski
Ed. Brasiliense


http://basho-imagery.blogspot.com.br/2012/11/basho-in-sumi-wood-bronze.html

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