Acima de tudo a democracia
Flávia Oliveira
A democracia é inegociável. A democracia é inegociável. A democracia é inegociável. Repito a frase como mantra do compromisso que, entrante na vida adulta, firmei ao tornar-me jornalista profissional. A ênfase guarda também a perplexidade por constatar que o Brasil dedicou a semana derradeira da corrida presidencial a escorar o regime que parecia solidamente assentado há três décadas. O segundo turno seria tempo de detalhar propostas para içar a pátria do mar de crises: do desemprego agudo à saúde precária, da Previdência insolvente à segurança pública em colapso, da educação combalida à economia emperrada. Mas, às vésperas do 28 de outubro, batuco o teclado para ratificar o velho juramento. Defenderei a democracia.
À moda Raul Seixas, confesso, abestalhada, que estou decepcionada. Mas não silencio. Queria ter, como tantos parentes, amigos, colegas, desconhecidos, o dom de naturalizar ideias brutais considerando-as esdrúxulas. Quisera cobrir-me com o manto de invisibilidade dos isentões. Mas integro o time dos democratas convictos, dos defensores dos direitos humanos como expressos na quase septuagenária declaração universal. Sendo assim, não tergiverso.
Pode ser que os anos de jornalismo econômico, 26 ao todo, tenham me emprestado excesso de desconfiança. Aprendi a duvidar de autoridades que precisam vir a público avisar que tudo está bem. Nos anos 1990, dia sim, dia também, membros do então governo se postavam a jurar em frente às câmeras que o sistema financeiro era sólido e o câmbio, fixo. Alguns dos maiores bancos do país foram varridos do mapa, e a livre flutuação do dólar, desde 1999, não me deixa mentir.
É por isso que, quando a presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Rosa Weber, convoca uma entrevista coletiva num domingo para dizer que as instituições estão funcionando, eu sinto que não. Principalmente, se o candidato vencedor do pleito no primeiro turno e seu círculo mais próximo colecionam declarações que põem em dúvida o sistema de votação e ameaçam o Judiciário. Nos últimos dias, o país foi tomado, de Norte a Sul e além-fronteiras, pelo repúdio às ameaças de Jair Bolsonaro (PSL) e filhos — um deles parlamentar reeleito, não jovem inconsequente — ao Supremo Tribunal Federal, à imprensa e a adversários políticos. Pronunciaram-se o presidente do STF, Dias Toffoli, e os ministros Celso de Mello e Alexandre de Moraes, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, defensores de direitos humanos, instituições da sociedade civil, entidades de defesa da liberdade de imprensa, jornais estrangeiros. Algo vai mal quando tanta gente precisa apelar por independência dos Poderes, liberdade de expressão e convivência com o contraditório numa democracia (supostamente) forte. E vai pior quando exatamente metade da população vê risco de o Brasil ser submetido a uma nova ditadura, como revelou o Datafolha em pesquisa divulgada uma semana atrás.
Favorito nas pesquisas de intenção de voto, o presidenciável Bolsonaro suavizou o discurso nas últimas horas, talvez por ter percebido o quão longe foi sua pregação linha-dura. Mas seu glossário, não é de hoje, comporta expressões afeitas mais ao autoritarismo que ao diálogo; à intolerância, em vez da proteção às minorias (indígenas, negros, mulheres, LGBTQs); à violência, não à cultura de paz. O colunista Elio Gaspari escreveu, na última quarta-feira, no GLOBO e na “Folha de S.Paulo”: “Há casos em que o cidadão tem que traçar a linha que não atravessará”. No meu caso, a fronteira imaginária separa direitos humanos da barbárie; diversidade da supremacia; democracia do autoritarismo. Daqui não passo.
Onde:
https://oglobo.globo.com/opiniao/acima-de-tudo-democracia-23186019
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