A história se repete como tragédia
Por Marcelo Semer
Em Ponte dos Espiões, filme dirigido por Steven Spielberg, o personagem de Tom Hanks é um advogado bem sucedido, nomeado pelo amigo juiz para servir de defensor dativo a um espião russo, preso nos Estados Unidos no meio da Guerra Fria.
O sistema quer o advogado para mostrar a superioridade da democracia norte-americana, mas Tom Hanks logo se apercebe que só esperam dele uma participação formal. Assim que começa a exercer sua função com zelo e combatividade, propiciando defesa ao “inimigo da pátria”, é abandonado por amigos e hostilizado por populares, com o franco estímulo da mídia. Acolhendo a um dos pedidos subsidiários da defesa do espião, depois de negar vários outros, o próprio juiz cai em desgraça e é vaiado em plena Corte.
O episódio, baseado em história real, é muito ilustrativo para compreendermos um pouco sobre o direito de defesa e o papel contra majoritário do juiz.
Nenhum dos dois é fácil e muito menos popular. Aqui reside a ideia de que a democracia constitucional é muito maior do que apenas a vontade da maioria. Existem direitos contra a maioria, que é a forma como o núcleo duro dos direitos individuais ou fundamentais se apresenta.
Interpretar direitos individuais à luz da vontade geral é praticamente o mesmo que extingui-los.
Dworkin ensinou isso com palavras melhores: “A existência dos direitos contra o governo seria colocada em risco se o governo fosse capaz de colocar em segundo plano tal direito, ao apelar para o direito de uma maioria democrática de fazer valer sua vontade. Um direito contra o governo deve ser um direito de fazer algo mesmo quando a maioria considera errado fazer tal coisa, ainda que a maioria fique prejudicada em razão disso"[1].
Teori Zavascki também o disse, pragmaticamente, ao repelir com firmeza, nesta semana, a noção de que o “interesse público” possa suplantar o direito fundamental à privacidade, quando determinou que conversas interceptadas por ordem judicial (para uma investigação criminal) não fossem exibidas publicamente.
A existência dos direitos fundamentais é o marco mais relevante do Estado Democrático de Direito. Não é à toa que estão elencados no início de nossa Constituição e são cláusulas pétreas, que o legislador protegeu de si mesmo, caso, enfim, mudasse de ideia. Ainda bem que o fez – pois não se tem dúvida, hoje, que ele se arrependeu muito da Constituição cidadã que acabou por aprovar.
Os direitos fundamentais, como uma cápsula de proteção dos indivíduos, não estão nem podem estar abaixo do interesse nacional; só no fascismo o interesse da nação pode se sobrepor à integridade de seus próprios indivíduos. Na democracia, direitos fundamentais são interesse nacional.
Não há dúvidas que é incômodo defender direitos contra majoritários. Entre a demagogia do discurso populista e a mistificação da retórica midiática, direitos são convenientemente traduzidos como desprezo à sociedade. A humanidade já viveu uma época em que era tratado como crime, tudo aquilo que ofendia o são sentimento do povo –mas a experiência nazista certamente não deixou saudades.
É preciso lembrar, todavia, como faz Robert Gellatelly, em Apoiando Hitler (Consentimento e Coerção na Alemanha Nazista)[2], que o endurecimento penal e a supressão de direitos e garantias foram instrumentos de legitimação popular da ditadura hitlerista. O Estado policial tem o seu apego, principalmente quando se populariza a contínua frustração com a justiça, que chega ao absurdo de chamar de país da impunidade, aquele que tem uma das mais altas taxas de encarceramento no mundo.
O crescimento do Estado policial tem recebido aplausos, pouco importa quem sejam seus responsáveis.
Se o STF decide que para efeitos de início de execução de pena, trânsito em julgado não é mais o trânsito em julgado, rifando a presunção de inocência, aplaude-se, porque será mais rápido prender -ainda que muitos cumpram penas excessivas ou injustas, pela demora na apreciação do recurso.
Se ocorre a condução coercitiva de quem nunca se recusou a comparecer, para submeter à força o que se poderia fazer espontaneamente, mais aplausos ainda. Afinal de contas, a ideia do juiz com um superpoder geral de cautela (que de cautela, a bem da verdade, não tem nada), parece ser extremamente sedutora para intimidar indiciados em geral.
Se a prisão provisória pode servir para obter delações, como um eficiente atalho da investigação, por que não usar a tortura em busca de igual produtividade?
Este Estado policial que vem sendo cimentado a passos largos tem sido um facilitador e ao mesmo tempo será a herança maldita de um embate político, que se iniciou no dia seguinte à proclamação do resultado eleitoral. A apuração de corrupção vem embutida dentro de um pacote em que se mesclam críticas ao gerenciamento, desânimo com a situação econômica e um violento macarthismo tardio.
Quem viu Trumbo, situado também nos Estados Unidos da Guerra Fria, certamente deve ter associado o momento de ódio e repulsa que vivenciamos nas últimas semanas, com o linchamento moral da época. Nem as listas de supostos comunistas estão faltando. A perseguição a camisas vermelhas de hoje, todavia, ultrapassa até a paranoia americana, com agressões a jovens e ameaça a pais de crianças.
As próximas semanas poderão comprovar, enfim, se a democracia veio para ficar por aqui, resistindo de forma brava justamente quando mais é ameaçada ou se estivemos vivendo nos últimos anos, em um ponto fora da curva, à espera de uma história que vai se repetir como tragédia mesmo. Um filme de terror do qual já sabemos o final.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.
Onde:
http://justificando.com/2016/03/26/a-historia-que-se-repete-como-tragedia/
http://jornalggn.com.br/noticia/o-direito-de-defesa-e-o-papel-contra-majoritario-do-juiz-por-marcelo-semer
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