Música, poesia e mulheres # Daniel Uria
por indicação da Helô
Poesia, por que não?
Márcio Tavares D'amaral
O Globo, 14/11/ 2015
Se há pergunta estúpida é para que serve a poesia. Na pergunta já está o decreto da inutilidade das coisas escritas quando não vão números no meio. Ou figuras. Poesia? Poesia numa hora dessas? Pois sim, claro. Essa é que é a hora. Quando está escuro. Porque se não temos luz para ver, e uma cegueira branca nos atordoa, é a voz do poeta que estraçalha a noite. Ela e a música.
A poesia, lá nos começos gregos, era feita para ser cantada. Talvez as exigências de métrica e ritmo tenham vindo daí. Hoje não precisamos mais deles. A emoção inteligente de que a poesia brota não vem em versos alexandrinos ou em decassílabos heroicos. Vem como a respiração: rápida de susto, lenta de cautela, profunda de medo, leve de alegria. E cheia de som. Boa de cantar. Mnemosine, a Memória, mãe das musas, não discriminava entre a poesia e a música, suas filhas. Punha-as enrodilhadas nessa alta realização da nossa cultura que é a poesia que se canta, a música que se diz.
Então, é assim: quando faz escuro, é preciso cantar. E acordar a cidade. Quando Roma foi atacada no século IV a. C., os gansos do monte Capitolino grasnaram até que os romanos acordassem e pusessem os invasores para correr. Nós somos os gansos do Capitólio. E tem muita gente que precisa ser posta para correr. Os que não amam, e não lhes basta não amar, o que seria um sofrimento só seu: querem contaminar o mundo com sua incapacidade de ternura. São perigosos. Inimigos da vida. Grasnar contra eles é como rir na cara do desamor. A incapacidade de amar é séria. Cheia de si. Não suporta o riso. Toma a alegria por sarcasmo. E se desconcerta. Desconcertemos então os ladrões do sol, os soturnos da vida.
Há esses, que não sabem amar e fazem disso uma alastrante epidemia, a indiferença. E há os outros, que não amam com objeto direto. Não amam as mulheres. Ou os homens. Ou as crianças. Ou os negros. Ou as pessoas com deficiências. Ou os homossexuais. Os gordos. Os velhos. Ou os palestinos. Ou os judeus. Ou os curdos. Os africanos. Os nordestinos. Os católicos, protestantes, ortodoxos, de novo os judeus, os umbandistas, candomblecistas, budistas, hinduístas, xintoístas, animistas — todos os que teimam em ver na vida uma dimensão invisível aos olhos da cara. Esses desamorosos são os mais temíveis. Tendo objeto, têm projeto. São destruidores. Estupradores da esperança. Grasnar contra eles em coros ensurdecedores, entupir as ruas com os nossos gansos sonoros é uma estratégia de sobrevivência. Para o mundo. Para a vida.
A grande astúcia da poesia é parecer que nem está aí. Ela nos toma quando habita a memória. Quando aparece por fragmentos nas conversas, e muda o rumo da prosa. A poesia é insidiosa. Com jeito de traste inútil, que não serve para coisas sérias, ataca na hora em que parece que a rotina morna a aboliu. Quando estamos, como escreveu Drummond, “sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo”. Para ele a salvação por duas horas foi o cinema. Passava Carlitos. Mas podia ter aberto o livro em que ele mesmo contou da flor que rompeu o asfalto. “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Pronto. A pele se eriça, os olhos se embargam, o corpo fica meio assim. A vida foi salva por um verso. O Anjo da poesia passou. Ninguém deu por isso, porque ele é invisível aos que andam apressados. Mas passou. E depois o ar ficou limpo como quando acaba a chuva. E a vida recuperou um ritmo generoso.
As mães, os pais, cantavam pequenos poemas para os filhos adormecerem. Não sei se ainda cantam. Mas as crianças dormiam sorrindo. Cheias de estrelas. As pessoas que trabalham nos campos cantam para ritmar a colheita e dar sentido ao passar das horas. As palavras cantadas vêm da memória antiga, não precisam mais ser pensadas. Seus sentidos já fazem parte dos corpos. É verdade, canta-se também quando se vai para a guerra. É má poesia, e só serve para entreter o medo. Esse é um dos casos em que o silêncio soaria melhor. Deixar o medo sem som. Talvez seja desse silêncio que a consciência refletida precise para objetar ao mal. E depois dizer poemas cheios de brandura. Como o de Adélia Prado: “... existe um bem, existe. E tudo é bom...”
Que a poesia não servisse para nada seria o sonho dos donos do mundo, dos cogumelos que contam seus metais e explodem sobre cidades. A malícia dos poetas é deixá-los pensar que é assim. Quando acordarem, um dia, a poesia estará nos top trends das redes, nos outdoors, interrompendo a programação das rádios e televisões. Revolução é isso. E que revolução! Essa em que a beleza, irmã gêmea da verdade, abolirá a noite, que doravante servirá apenas para dormir e sonhar. E decretará o sol.
Onde:
http://oglobo.globo.com/cultura/poesia-por-que-nao-18045657
https://www.pinterest.com/pospag/poster-bolivia/
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